Há bandas que têm um efeito ansiolítico sobre a sua audiência. Reduzem a ansiedade, libertam o cérebro para a explosão de novas e gratas sinapses, que nos fazem rever a maneira como interpretamos o mundo. Elevam-nos o espírito com poesia de profundidade existencial e entretêm a sensibilidade com melodias poderosas, mas pacificadoras. Os Gang of Youths são uma dessas bandas e o seu último disco, “Angel in Realtime”, é um triunfo do rock alternativo, uma apogeu operático que define o estágio alquímico em que David Le’aupepe, compositor, vocalista, guitarrista e motor criativo do colectivo de Sidney, atinge a sua maturidade artística e performativa.
No princípio era uma ideia de novos caminhos.
Mas é importante voltar um bocadinho atrás, ao ano de 2015, quando os Gang of Youths iniciaram o seu trajecto com um primeiro longa duração, “The Positions”, que vendeu muito bem e cujo fulgor e originalidade logo projectou a banda para várias nomeações como “Banda Revelação” e “Melhor Álbum do Ano”, pela ARIA, a entidade que premeia a indústria musical australiana. Temas como “Benevolence Riots”, “Evangelists” e “Magnolia” anunciavam a veia lírica de Le’aupepe e a versatilidade orquestral do conjunto, bem como o seu carácter não alinhado, que conduz a trilhos inexplorados pela música popular anglo-saxónica, mesmo quando notamos a influência de celebridades como os The National ou os Arcade Fire. A presença magnética e a habilidade performativa de Le’aupepe, que nasceu completamente para esta vida de estrelinha rock, também saltavam à vista, como é evidente no clip de “Magnolia”.
Entre a popularidade e a erudição.
Os bons augúrios desse primeiro trabalho confirmaram-se logo dois anos depois. “Go Farther In Lightness”, editado em 2017, ofereceu à plateia global a força vital e a ambição artística que é imagem de marca dos Gang of Youths. Electrizante, irredutível, a passos brutal, noutros delicado, este disco foi um sucesso comercial de todo o tamanho (considerando a sua vocação alternativa) e ganhou os prémios ARIA de “Disco do Ano”, “Melhor Grupo” e “Melhor Disco Rock”, colocando a banda no elevador da glória e no palco dos grandes protagonistas da cena indie mundial. Não é por acaso que um dos temas mais fortes deste trabalho tem como título “The Heart is a Muscle”. Há aqui muita energia, muito músculo, muito coração.
Mas o que “Go Farther In Lightness” mostrava de mais sublime nem era bem a veia épica da banda, mas antes a sua deliciosa inclinação para as incursões na música dita erudita, que requerem não só alguma coragem como significativa sofisticação de recursos criativos e técnicos. Os Gang of Youths decidiram-se a uma caminhada pelo fio do arame. E saíram airosamente desse arriscado malabarismo. Mesmo quando Le’aupepe se cala para deixar os violoncelos vibrar.
Um anjo em tempo real.
Em novembro de 2021, os Gang of Youths lançaram o seu terceiro trabalho de estúdio e tudo o que se pode dizer sobre o assunto é que encontramos aqui um culminar. Mesmo que a banda acabe por lançar mais dez discos para cima do futuro, esta é uma obra magna. Quando ouvimos os australianos sabemos instintivamente que aqui ninguém está a brincar à música popular. Mas este disco é um triunfo. Criativa e tecnicamente complexo, os seus 13 temas desenrolam camadas sobre camadas de substância harmónica e lírica com generosa intensidade. É uma coisa monumental.
É extremamente difícil selecionar as canções que devem constar desta apologia. No Blogville tocaram e ainda estão a tocar quase todas. Mas vamos ser económicos.
Uma das características identitárias que mais comove no percurso lírico desta banda é o seu optimismo. Mesmo quando profundamente embrenhados no coração das trevas, os Gang of Youths apresentam inevitavelmente uma solução luminosa. Transportam sempre uma chama olímpica. Estão constante e teimosamente a carregar num interruptor qualquer, talvez mágico, que ilumina a consciência com boas ideias.
E depois, talvez a sua máxima virtude: fazendo música pelo prazer de a fazer, sem compromissos para além daqueles que são parte integrante do seu manifesto artístico, os rapazes conseguem, suprema ironia, ser simpáticos com tímpanos até menos habituados às contigências do rock alternativo. Conseguem, aqui e ali, ser fáceis ao ouvido. Mesmo quando por trás dessa facilidade, foi montada uma difícil trama de versos e acordes.
Todas as regras de ouro e todas as proporções sagradas são inclusas neste magnífico longa duração. E podemos ficar a ouvir “Angel in Realtime” durante semanas a fio e ainda assim descobrir, à última da hora, uma nova e deliciosa armadilha. Um detalhe espantoso no tecido melódico. Um verso genial por entre os decibéis. Dentro desse emaranhado de subliminares criações, rebenta esta trova, cujo poema é uma novela biográfica de inominável beleza e crueza e ternura, absolutamente um semáforo no vórtice do caos. O ContraCultura recomenda vivamente a sua atenta audição e leitura. Os Gang of Youths – e o seu mago David Le’aupepe – merecem completamente uns minutos de foco.
Our father hid a lot of painful memories
A bunch of shit he never shared
But when he died, I went out looking for them
For all the things he never saidThought he was born in 1948
But was born a whole decade before
Thought he was brought up in New Zealand
But he was born and brought up in SamoaWe thought that he was only half-Samoan
That his mother was a German Jew
But I went and found his birth certificate
And he lied about that tooOur father’s love was unmistakeable
And he gave us еverything he had
And I guess that mеant pretending he was half-white
To give his kids a better chanceMy sister, she lives out in New York City
Been there since I was seventeen
And I think she hates it, but like most New Yorkers
She just can’t bring herself to leaveShe used to love to watch our father cooking
And imitate the things she’d seen
And now she makes the most amazing things
And she also sings better than meAnd when he died, she and her husband stayed
To keep my mother company
And even though it fucked them up a lot
They did a better job than meAnd I wish that we could see them every weekend
And she could cook her famous meals
And I wish that I could hang out with her husband
More than a couple of times a yearOur brother Wesley is a quiet man
And he is the second of us four
And he inherited our father’s hands
But he looks like me a little moreHe has a love that’s unmistakable
And he’s seen police brutality
He lives in Auckland with his wife and dog
And he stands a shade above six-threeOur father left him with a cousin then
He got into trouble frequently
Me and my sister only heard of him
In 2018Our brother Matthew is a baker, and
He stands a mighty seven feet
He was brought up in a Māori family
And speaks Te Reo fluentlyHe didn’t know about our father ‘til I
I guess he was about eighteen
And he did some time for something awesome
And he’s the sweetest guy you’ll ever meetHe came to meet me at a festival
And he told me everything he knew
That our father left him at the hospital
But if he forgives him, then I should tooLa-la-la-la, la-la-la-la, la-la-la
La-la-la-la, la-la-la-la
La-la-la-la, la-la-la-la, la-la-la
La-la-la-la, la-la-laI know our father had his reasons
But that can never make it right or fair
And I hate myself for stealing all his love
When my brothers thought that he was deadSo as I dig through the collateral
The secrets hid throughout the years
I know I’ll hardly ever answer them
But it’s the way to keep him nearLa-la-la-la, la-la-la-la, la-la-la
La-la-la-la, la-la-la-la
La-la-la-la, la-la-la-la, la-la
La-la-la-la, la-la, la-la
Gang of Youths. Uma das razões pelas quais é impossível perceber porque raio é que tanta gente que gosta de rock alternativo ouve tão pouca produção contemporânea. Se há coisa que o pós-modernismo – e suas derivações mais modernas ainda – não conseguiu destruir foi a música popular independente. E não faltam bandas de dimensão universal na duração das primeiras décadas do século XXI. Esta é uma delas.
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