Primeiro império colonial moderno e o último a desaparecer, o “mundo que os Portugueses criaram” foi bem o exemplo da tenacidade de um povo que conseguiu, à escala global, dar luta e sobreviver aos choques com inimigos bem mais poderosos. O honorável Professor do King’s College, Sir Charles Ralph Boxer (1904-2000) traça a evolução do império marítimo português desde as primeiras viagens de descoberta, no início do século XV, até à independência do Brasil, numa obra que disseca as grandezas e os reveses de uma aventura sem paralelo na história da humanidade. Pela visão de conjunto e profundidade da investigação “O Império Marítimo Português”, das Edições 70, constitui sem dúvida uma obra fundamental na bibliografia da história da expansão portuguesa.
Ainda assim, este tratado não dá solução ao mistério que se propõe resolver. Na introdução, Boxer manifesta a sua perplexidade: como é que um país pobre, marginal e insignificante como Portugal consegue o milagre de dominar o mundo, fundando o primeiro império colonial de sempre; frágil, caótico, demograficamente impossível, mas de tal forma bem sucedido que acaba, pasme-se, por durar sobre todos os que lhe seguiram, sendo paradoxalmente o último império colonial a cair? A verdade é que o autor acaba por não encontrar resposta para as suas perplexidades.
Apanhado pelos ventos da história (o livro foi publicado em 1969 e usado por detractores do império colonial português, tanto como pela propaganda do Estado Novo), C. R. Boxer cai num erro de colegial que compromete, no meu entender, a virtude da sua erudição: recusa-se a perceber que ao historiador não compete ser juiz. O contexto social, ético e cultural dos descobrimentos portugueses não pode ser avaliado à luz da moral do século XX. E assim, erradamente, os portugueses são-nos apresentados como um povo ferozmente anti-semita e alegremente esclavagista, constituído em grande parte por fanáticos religiosos. Na verdade, os portugueses não eram seguramente católicos mais fanáticos que os espanhóis, não eram mais anti-semitas que a maior parte dos povos europeus da sua altura, nem viam a transacção de carne humana com melhores ou piores olhos que os seus adversários directos na corrida pela liderança do comércio no Atlântico setecentista.
Acresce que a mentalidade WASP do autor está sempre presente: quando os ingleses e os holandeses roubam, trata-se de corso. Quando são os portugueses a pilhar, trata-se de decadência, corrupção e de um inevitável decaimento latino para a desonestidade. Um problema que, pelos vistos, é comum a uma certa historiografia contemporânea.
Toda a obra, mas principalmente a sua segunda parte, é de tal forma deprimente e eloquente sobre a desorganização e disfunção do império que o autor não consegue perceber como é os Descobrimentos foram sequer possíveis. Os reis são sem glória nem visão (até D. João II é um incompetente e o único que escapa é Filipe II, que é de qualquer forma grandemente ignorado durante toda a obra) e basicamente nunca houve soldados, marinheiros, geógrafos, capitalistas e frotas em quantidade e qualidade que chegasse para uma aventura destas.
No caso da qualidade dos soldados portugueses, Boxer parece ignorar que a tradição militar lusitana teria, à altura dos Descobrimentos, uma herança de combatividade e competência muito assinalável, com vitórias épicas nas guerras fronteiriças e de reconquista. Na verdade, não há qualquer indício que a performance bélica fosse uma fraqueza do império. Dada a escala geográfica da gesta marítima, os parcos recursos demográficos da metrópole e o valor e a diversidade dos inimigos que enfrentámos, tudo indica, ao contrário, que as forças militares portuguesas se distinguiam pela sua eficiência, superioridade tecnológica e acutilância em combate.
As contradições entre os factos históricos e as conclusões do historiador são uma constante, à grande e à pequena escala. Por exemplo: nas páginas desta obra constatamos com surpresa que a Companhia do Brasil foi um fracasso, cujo sucesso colocou enormes problemas de sobrevivência aos portos portugueses, que sofriam como o monopólio (!).
Outro exemplo: quando os padres jesuítas dão, na China, sólidos indícios de tolerância racial, fazem-no exclusivamente por pragmatismo. Mas quando em Goa recusam a equalização étnica das carreiras eclesiásticas imposta por Pombal, já não são apenas ambiciosos. São racistas da pior espécie.
É também recorrente a afirmação de que os portugueses eram um povo ignorante, conservador, alérgico à mudança, ficando o leitor sem perceber, mais uma vez, como é que esta tribo de atrasados mentais conseguiu inaugurar uma época de inovação técnica e de aventura cosmopolita sem grandes precedentes na história da humanidade.
Perdido dentro dos seus próprios mal entendidos, C. R. Boxer, acaba o seu manual de história-para-inglês-ver explicando ao leitor que o Império Marítimo Português só foi possível dada a fé irracional em dois mitos inter-relacionados e alimentados por uma inexpugável fé católica: o do retorno sebastiânico e o do Quinto-Império.
Sinceramente, que tese tão fraquinha.
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