A Teoria do Multiverso está na moda. Divulgadores de ciência, gurus académicos e correspondentes discípulos nos media, escritores de ficção científica e outros teóricos alienados estão constantemente a bombardear a leiga audiência com esta ideia de uma plataforma primordial, niilista, não consumidora de energia, que concebe universos aleatórios sem dificuldade nenhuma e em quantidade infindável. O nosso universo é apenas mais um de um conjunto infinito de universos com propriedades diferentes e leis distintas. Num sistema assim, qualquer aparelho cósmico que o leitor queira imaginar não é só possível: é provável. Isto é de tal forma disparatado, é de tal forma impossível de ser comprovado com as ferramentas que temos ao nosso dispor, que não contribui em nada para o entendimento da realidade.
Com a inestimável ajuda de Sabine Hossenfelder, física teórica alemã, investigadora no Instituto de Estudos Avançados de Frankfurt e carismática youtuber, o ContraCultura propõe-se demonstrar porque é que esta teoria pode ser muito interessante para uma conversa de café ou a fundação de um culto religioso, mas não tem rigorosamente nada que ver com ciência.
A Teoria do Multiverso desmultiplica-se na verdade em várias subcategorias. A mais popular actualmente entre os físicos que se dedicam à quântica é a sub-categoria dos “Muitos Mundos”. Esta hipótese deriva do carácter estatístico da mecânica ondulatória, em que as previsões sobre o comportamento da matéria são constrangidas inevitavelmente a um cálculo de probabilidades. Por exemplo, num dado momento apriorístico, a possibilidade de uma partícula sofrer um desvio para a direita é de 50%. No fim do seu trajecto, saberemos se esse desvio se confirmou ou não, com 100% de certeza, mas à partida a incerteza é irredutível. E enquanto a interpretação de Copenhaga diria que a mensuração no fim do processo reduz a incerteza a zero, porque nessa altura conseguimos saber onde foi parar o raio da partícula (o chamado “colapso da função ondulatória”), na versão dos “Muitos Mundos” a probabilidade do desvio para a esquerda, que existia de forma equivalente à partida, acaba por ocorrer em simultâneo, mas não a conseguimos observar porque aconteceu num outro mundo. Todas as possibilidades que uma determinada situação encerra acabam sempre por acontecer noutros mundos. A matemática que está na base da interpretação de Copenhaga e na interpretação dos “Muitos Mundos” é a mesma, tudo depende da extrapolação especulativa que se faz a partir dos dados. Ora, como na profundidade infinda do campo quântico estão sempre a nascer probabilidades disto ou daquilo acontecer, estão também sempre a ser criados novos universos. Tudo o que é possível é real e as flutuações de campo quântico criam universos infinitos, eternamente.
A Teoria das Cordas, outra variação da Teoria do Multiverso, já chegou a ser considerada o único caminho viável para uma “Teoria de Tudo”, mas entretanto caiu em desgraça porque se mostrou infrutífera. A tese começou por postular que, à luz das suas equações, seria possível determinar todos os valores das constantes cósmicas, mas como isso na verdade nunca aconteceu, os seus adeptos decidiram que afinal todos os valores eram possíveis, desde que existissem universos em quantidade suficiente. Se temos valores específicos neste cosmos é porque os outros valores todos se devem plasmar noutros universos. O horizonte da Teoria das Cordas é um multiverso em que todas as constantes da natureza se manifestam em todos os valores possíveis. Inclui universos com leis diferentes e consubstanciações diversas da matéria. Haverá universos com leis da termodinâmica completamente diferentes, com intensidades gravíticas para todos os gostos e constantes cosmológicas a la carte, que permitem a formação mais rápida ou mais lenta de galáxias ou simplesmente que não permitem sequer a sua existência. Para todos os efeitos, a Teoria das Cordas potencia um cardápio interminável de soluções cósmicas. É só escolher o que mais nos agradar.
Estas e outros variações do multiverso, como o universo matemático de Max Tegmark, em que todas as possibilidades matemáticas existem em concreto, ou a hipótese da simulação, segundo a qual o nosso universo é um simulacro virtual (e se podemos simular as leis do nosso universo, podemos simular universos com outras leis), têm em comum, porém, o mesmo problema fundamental: postulam a existência de algo que não é nem observável, nem mensurável. Como não podemos interagir ou manipular ou testar estes modelos, que são completamente desligados da nossa realidade, que utilidade têm? No que diz respeito à ciência, nenhuma. Apesar disso, não faltam cientistas e académicos que levam estas teorias muito a sério, porque essa hipótese surge nas suas deambulações matemáticas e como a matemática descreve certas coisas que existem no mundo natural eles acreditam que deve descrever tudo o que existe. Tudo o que é equacionável, será possível. Estão nitidamente a confundir a matemática com a realidade.
Nada disto não quer dizer que outros universos não existam de facto. Quer dizer apenas que o conceito não contribui minimamente para o entendimento do nosso universo. As teorias do multiverso, na verdade, são pura pseudociência: fingem que são ciência, mas não o são. Não são demonstráveis. Não são reversíveis nem replicáveis, nem podem ser submetidas a qualquer iniciativa empírica. Assim sendo, acreditar que universos não observáveis existem é um acto religioso. Pode ser divertido, pode ser consolador (embora não se perceba lá muito bem como), pode resolver problemas fundamentais da matemática e simplificar linhas de raciocínio académico. Pode constituir uma excelente plataforma para a ficção e preencher todo um argumentário contra a existência de Deus. De resto, são estéreis.
Sabine destrói o culto do Multiverso num breve ensaio de lapidar eloquência. Dado que se trata de uma destacada académica, a crítica, que vem de dentro da comunidade científica mainstream, tem acrescida credibilidade.
Mas para além do estrito âmbito científico, as teorias do multiverso também não servem condignamente outras disciplinas, como a filosofia, por exemplo, na medida em que tudo o que fazem é encolher ainda mais a esfera antrópica. O universo que habitamos é já de si de uma imensidão incomensurável. O homem do século XXI já foi reduzido, por isso e por outras muitas razões, à condição de subpartícula absolutamente insignificante. Se adicionarmos infinitos universos ao nosso, com infinitas cosmogonias e infinitas variações, chegamos a um ponto de não retorno no que diz respeito à possibilidade de encontrar um significado e um propósito para a condição humana. E em nome de que valores éticos fazemos tal coisa? Qual é a vantagem de reduzir o Sapiens à sua mais quântica escala? Seremos nós mais virtuosos ou sábios, mais realizados ou realizadores, mais responsáveis ou generosos, se formos encapsulados num esmagador axioma de total irrelevância?
É claro que não. É claro que pelo contrário.
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