“Vladimir Putin diz-se um homem  religioso. Assim sendo, é bem possível que, todas as noites, quando se deita, faça as suas orações e pergunte a Deus: porque não puseste montanhas na Ucrânia?”

 

“Prisioneiros da Geografia – Dez Mapas Que Lhe Revelam Tudo o Que Precisa de Saber Sobre Política Internacional”, de Timothy John Marshall, é um livro fascinante. Primeiro porque volta a chamar a atenção do leitor para uma variável das relações internacionais cuja importância fundamental, no século XXI, tendemos a desvalorizar ou esquecer de todo: a geografia. Depois porque está carregado de detalhes extremamente significativos, que fazem luz sobre a História, tanto como sobre o momento que estamos a viver. Mas é melhor começar pelo princípio.

Timothy John Marshall é um jornalista britânico, escritor, radialista e apresentador de televisão, especializado em relações internacionais e diplomacia. Neste bestseller do New York Times, debruça-se sobre dez mapas de regiões cruciais do planeta (Rússia, China, EUA, Europa Ocidental, África, Médio Oriente, Índia e Paquistão, Coreia e Japão, América Latina e Árctico) para explicar as estratégias geopolíticas das potências mundiais. Porque é que Putin é tão obcecado pela Crimeia? Porque é que os EUA estavam destinados a tornar-se uma superpotência global? Porque é que a base de poder da China continua a expandir-se? Porque é que o Tibete está destinado a perder a sua autonomia? Porque é que a Europa nunca estará unida? Marshall encontra respostas nas contingências do relevo, do clima, da fertilidade dos solos, da navegabilidade dos rios e do acesso aos mares.

O livro foi publicado nos Estados Unidos em 2015, pelo que há muitos acontecimentos deveras substantivos que entretanto ocorreram e que são omissos neste trabalho, mas nem por isso ficam por explicar, com especial incidência no caso russo. Sendo colaborador da imprensa mainstream britância (BBC e Sky News) é natural que o jornalista tenha hoje em dia opiniões muito críticas sobre a iniciativa militar de Putin. Mas na verdade, no capítulo deste livro dedicado à Rússia, essa iniciativa é justificada, em parte, pelo problema que assombra historicamente qualquer residente do Kremlin: a Ucrânia é uma enorme e plana pista de entrada para a Rússia, de quem vem da Europa. E a Crimeia o único porto a que Moscovo tem acesso no hemisfério ocidental cujas águas não gelam no Inverno. Marshall até consegue articular a apreensão com que os líderes russos encaram o expansionismo da NATO em territórios adjacentes ao seu país, parágrafos que, é de crer, deve estar neste momento muito arrependido de ter escrito.

A verdade é que todos os líderes políticos e militares são constrangidos pela geografia. As características físicas destes países afectam as suas forças e as as suas vulnerabilidades e, por isso, o curso da história. Não é por acaso que potências vizinhas como a China e a Índia, com interesses estratégicos opostos e culturas muito diferentes, só por uma vez entraram em conflito militar directo (numa guerra de uma só batalha, travada a grande altitude e em condições muito difícies que, precisamente por isso, durou apenas um mês): entre os dois gigantes ergue-se um argumento geofísico que supera a demografia, a economia, a política, a tecnologia e a desavença: os Himalaias. Também não é por acaso que o Brasil, destinado pelo seu território e massa demográfica a ser a primeira potência da América do Sul, tem tido tantas dificuldades em escapar do âmbito terceiro mundista: os seus rios não são navegáveis, a sua costa eleva-se abrutamente logo depois da orla marítima, oferecendo poucas oportunidades à actividade portuária e complicações ainda não resolvidas à logística do comércio e dos transportes. Mais a mais, um terço do país é ocupado pela selva equatorial.

O livro explica também como, muitas vezes, o expansionismo agressivo das nações decorre na verdade de instintos de defesa. A China, que historicamente nunca foi um império expansionista, ocupou, em 1949, a vasta região de Xinjiang, a nordeste do seu território milenar, parte do turquestão, habitado por muçulmanos de língua turca: os uigures. Essa ocupação deveu-se ao pensamento de Mao Zedong, fundamentalmente correcto, de que a maior fragilidade do império do meio residia nessa planície, por onde, através do cazaquistão, um exército descobre um caminho relativamente desimpedido até ao coração da China.

Da mesma forma, a expansão territorial russa, iniciada por Ivan o Terrível e continuada até ao império soviético, teve por fundamento a procura de barreiras naturais de defesa do seu núcleo territorial contra mongóis, otomanos e, mais tarde, as potências ocidentais e asiáticas. A leste, avançou até aos montes Urais, primeiro, e depois até ao Pacífico. A sul, a expansão desceu até ao mar negro e à estreita fortaleza natural do Cáucaso. E a oeste, alimentou a ambição, realizada por Pedro o Grande e depois pelos sovietes, de estabelecer um limite nos Montes Cárpatos. Tudo isto porque o coração da Rússia não tinha defesas geofísicas. Nem espaço para retiradas estratégicas. E se pensarmos como a Rússia venceu guerras como as napoleónicas ou resistiu a invasões como a nazi, retirando primeiro e depois lançando contra ofensivas, percebemos o acerto de decisões que nos parecem à primeira vista apenas bárbaras.

Tanto mais que nos últimos 500 anos e só contando os inimigos ocidentais, os russos foram invadidos por polacos (1605), suecos (1708), franceses (1812), franceses, ingleses e turcos (1853), e pelos alemães em 1914 e 1941. Em média, os russos combateram na planície do norte europeu uma vez em cada 33 anos.

O capítulo referente aos Estados Unidos é interessante para quem nunca tenha olhado para um mapa da América do norte. A geografia explica em boa parte como é que a federação se transformou numa potência mundial, com destaque para a navegabilidade do Mississipi e a sua disponibilidade para o transporte de mercadorias, as extensas planícies férteis do Midwest e as orlas marítimas que, incluindo o Alasca, fazem fronteira com 3 oceanos, embora não explique de todo o seu actual processo de declínio e queda. Disso, tratam outras disciplinas, como aquela a quem ainda ninguém se lembrou de atribuir um nome: a que estuda a estupidez humana.

Marshall dedica um mapa ao extremo oriente, que enquadra as coreias e o Japão. A península coreana, historicamente pressionada – e frequentemente violentada – por chineses, russos e japoneses é uma ironia dos deuses da geografia. Por um lado é frágil e isolada e quase insignificante. Por outro é um punhal apontado ao Japão, uma constante dor de cabeça para o império do meio e, actualmente, a sua metade sul constitui talvez o melhor exemplo de como uma aliança entre a industrialização e a tradição podem criar uma potência económica do nada.

No capítulo referente ao mapa do Árctico, o território que será seguramente o mais cobiçado do século XXI, dado o seu potencial no que a recursos energéticos e minerais diz respeito, bem como às suas rotas comerciais, percebemos como é neste momento intrincada a situação geo-política, porque com a excepção dos Estados Unidos, que parecem desvalorizar a importância desta vasta região do planeta, há sete cães a disputar o apetecível osso: Rússia, Dinamarca, Noruega, Finlândia, Suécia, Canadá e Islândia. A Rússia tem clara ascendência, muito por causa de possuir mais navios quebra gelo do que os outros países todos juntos, mas também por ser um país que tem uma fronteira imensa virada para o oceano gelado do Polo Norte.

Sobre a Europa, a análise cai na banalidade, e quando visitamos África e o Médio Oriente, a obra torna-se politicamente correcta ao ponto de ser desinteressante. O autor, como quase todos os académicos e jornalistas que escrevem sobre esta classe de assuntos, revela-se um repetidor incansável dos mesmos dogmas que têm infestado o pensamento das elites desde o pós-guerra e atribui os problemas que atormentam estas duas atormentadas regiões planetárias à colonização branca: toda a miséria, todos os horrores e as guerras, toda a corrupção, toda a culpa é enfiada no incomensurável fardo das potências europeias.

Esta estafadíssima tese, em plena segunda década do século XXI, setenta anos depois da queda do império britânico, cento e cinquenta anos depois da queda do império espanhol, cinquenta anos depois da queda do império português, sessenta anos depois da queda do império francês, já devia ter sido revista e actualizada, mas não. As fronteiras, que foram sem dúvida estupidamente desenhadas na ignorância de circunstâncias geofísicas e étnicas pelos colonos brancos, permanecem, surpreendentemente, intocáveis, muitas décadas ou até séculos depois dos colonos terem abandonado os territórios. Pelos vistos, e apesar do seu mau desenho, agradam aos nativos também. A maior parte das estruturas públicas e económicas que os brancos construiram nestes países, como escolas, universidades, hospitais, palácios presidenciais, assembleias legislativas, sistemas de irrigação, modelos de exploração agrícola e explorações mineiras são as únicas estruturas do género que por lá subsistem. Pelos vistos, a construção de civilização não é do agrado dos nativos. A explosão dos índices de corrupção, belicismo, barbarismo, crime a anarquia depois da retirada das potências estrangeiras também não recebe justificação. Pelos vistos, são assuntos que dizem apenas respeito aos nativos que os brancos carregados de culpa não podem nem devem inquirir. A África do Sul do apartheid era um monumento à infâmia dos homens, é verdade. Mas a África do Sul contemporânea, que será o país mais perigoso e socialmente explosivo do planeta, com miséria abundante e obscena contrastando com a opulência chocante de um punhado de privilegiados, é um hino à dignidade humana?

Uma vez que estes países foram entregues à sua (má) sorte, podemos realmente dizer que, na esmagadora maioria dos casos, as pessoas vivem lá melhor? Não, não podemos, se quisermos ser rigorosos E depois de décadas ou séculos passados sobre esse momento de libertação, podemos continuar a insistir nas deficiências do legado ocidental? Não, não podemos, se quisermos ser objectivos.

Neste ponto, “Prisioneiros da Geografia” entra até numa contradição em termos com o espírito que preside à sua redacção: nos caso em que é conveniente, o autor substitui a importância da geofísica pelo carácter decisivo da história e da política. Em África já não são importantes os rios, as cadeias montanhosas, os desertos, os rigores do clima, não. Aqui tudo se explica à luz da colonização branca. E no médio Oriente, faz-se recurso, mais detalhe menos detalhe, à mesma cartilha.

Ainda assim, “Prisioneiros da Geografia – Dez Mapas Que Lhe Revelam Tudo o Que Precisa de Saber Sobre Política Internacional” é um livro útil e interessante, cuja leitura o ContraCultura recomenda sem reticências. E se não fossem estas últimas corruptelas de baixa sacristia, teria apenas os defeitos que todas as obras que tentam explicar a actividade humana à luz de umas poucas variáveis apresentam: a redução do complexo ao elementar pelo recurso determinista a pontos de vista redutores deixa sempre muitas variáveis à margem da discussão. O Japão tem um geografia difícil e recursos naturais muito limitados. Triunfou no palco mundial e é hoje um dos países mais ricos, tecnologicmanete avançados e civilizados do mundo. O Canadá é um sítio inóspito, que ninguém no seu estado mental regular decidiria habitar. Mas as pessoas vivem lá esplendidamente (ou viviam até à chegada ao poder de Justin Trudeau). Angola tem argumentos em recursos naturais e geofísicos completamente a seu favor. É um país miserável. O Afeganistão é um inferno da geografia. Mas, de Genghis Khan a George Bush Jr., de Alexandre o Grande a Leonid Brejnev, não faltaram impérios nem imperadores que o não cobiçassem. Portugal localiza-se no rabo da Europa. É e sempre foi pequeno, marginal, demográfica e politicamente irrelevante e economicamente lastimoso. Constituiu um império comercial que se estendeu entre Lisboa e Nagasaki e que, sendo o primeiro na Europa, foi o último a cair. Os exemplos são inúmeros porque, como é óbvio, nem tudo se revela pelo uso da cartografia.

Mas tudo isto seria expectável e até compreensível, porque, talvez com a excepção do lendário “Declínio e Queda do Império Romano”, de Edward Gibbon, há na verdade muito poucos livros alguma vez escritos que expliquem as dinâmicas humanas pela inclusão de todas as suas possíveis variáveis.

O que não é de todo aceitável, para um autor que é sem dúvida um erudito no seu tema de eleição, é a volição espúria e facilitista de procurar o que é correcto, em vez do que é verdadeiro.