Johann Sebastian Bach

I – O cálice sagrado por um soporífero.

A história oficial da mais bela obra alguma vez escrita para o teclado começa no Inverno de 1741. Aproveitando uma das suas fastidiosas deslocações a Leipzig, o conde Hermann Karl von Keyserling – embaixador russo na corte eleitoral da Saxónia – traz desta feita consigo o jovem cravista Johann Gottlieb Goldberg, seu dotado criado, e encomenda-o às lições do mais reputado dos compositores do barroco.

Por esta altura, Johann Sebastian Bach anda às voltas com um exercício que, de certa forma, desconsidera: as variações. A tarefa ingrata de repetir ad nauseum o mesmo fundamento harmónico dá-lhe dores na imaginação e o trabalho não progride.

O conde Keyserling assiste frequentemente às lições que está a pagar ao imberbe virtuoso e num desses momentos a três, sugere a Bach que lhe componha uma peça musical para que Goldberg a possa tocar nas noites de insónia de que sofre regularmente.

Empenhado em contribuir com a sua arte para o bom estado de saúde do distinto diplomata, Bach cogita sobre o paradoxo: como é que alguém poderá estar desesperado ao ponto de adormecer com a sua música? E como poderá ele alguma vez criar música que adormeça alguém? A arte alemã do barroco destina-se a elevar os espíritos e não a entorpecer a audiência. A solução, porém, estava mesmo à sua frente: uma obra-prima cuja geometria permita em simultâneo a monótona repetição e um chilrear de criatividade. Dizendo de outra maneira: As Variações. Entusiasmado, Bach entrega-se à sua sagrada missão e em dois meses conclui uma peça de música cuja dimensão olímpica não tem absolutamente explicação possível.

Nunca se percebeu se o santo remédio aliviou o Duque da sua problemática espertina, mas a verdade é que o aristocrata teve o bom senso e o bom gosto de se dar à generosidade, oferecendo a Bach um milionário e lendário cálice de 100 luíses de ouro. Keyserling mostrava-se até bastante orgulhoso da obra que pagara afinal a bom preço (não há moeda no mundo que pague metade desta pérola), tanto mais que estas foram as únicas variações alguma vez compostas por Bach.

A história não oficial que é possível construir é só ligeiramente diferente: não desconfiando nada da insónia do Duque, que até é esteticamente coerente, a ideia das variações será porém anterior à sugestão de Keyserling, já que parece legítimo especular que o maestro dos maestros se limitou a fazer render a obra que já estava a cozinhar e que as suas motivações transcendiam a piedosa preocupação com o justo sono de Keyserling. Aliás, deveras surpreendente seria que o Capellmeister de Leipzig considerasse, à partida, digna do seu estatuto a encomenda de uma peça musical estupefaciente. Avaliando bem e por certo as vantagens de agradar a uma figura política de relevo, que podia meter uma cunha na corte real saxónica, Bach acedeu.

Para eliminar equívocos, há que dizer que o compositor alemão foi um dos poucos génios da história da humanidade que não morreu sem reconhecimento e nunca lhe faltaram respeitáveis empregos. Neste preciso momento de Leipzig, já com 56 anos, Bach é o mais apreciado músico da elite prussa, desempenhando em simultâneo três prestigiadas e bem pagas posições. Mas nada disto lhe cansa a ambição: um cargo de mestre na corte de Frederico II ajustava-se melhor às suas pretensões. E talvez um certo diplomata bem dormido, pudesse fazer o favor de interceder.

 

II – Goldberg: de criado a ícone por razão nenhuma que se perceba.

Johann Gottlieb Goldberg

 

Um dos enigmas desta história reside na estranha figura de Johann Gottlieb Goldberg. Figura translúcida e eminentemente literária, o jovem virtuoso soma apenasmente 14 anos de existência quando começa a sua aprendizagem com Bach. Por muito maravilhoso que fosse o seu talento de teclista clearasil, o Mestre capelão – ele também um virtuoso – dificilmente se deixaria encantar ao ponto de aceitar que o seu trabalho fosse assim baptizado. Estas Variações BWV 988 são constituídas por 2 árias e 30 variações para teclado que manifestam o talento divino de Bach, mas também a sua erudição e o seu virtuosismo. A Coisa forma um todo logarítmico de tom iniciático que tem excitado a imaginação dos matemáticos, a inspiração dos filósofos e o vernáculo dos críticos. Por prodígios destes é que Beethoven, contra a ilustrada opinião do seu tempo, dizia que Bach era o pai da harmonia. E assim sendo, porque é que Goldberg – um simples criado cuja fama advém afinal deste único episódio – foi para aqui chamado?

O primeiro biógrafo de Bach, Johann Nikolaus Forkel, fonte mais ou menos credível de grande parte do que conhecemos sobre a vida de Johann Sebastian, também não explica lá muito bem o assunto, sugerindo que existia de facto um elo de afecto meio paternalista entre o professor e o seu pupilo. Ora, o maestro teve sete filhos, quatro chegaram a adultos e dois deles foram conceituados compositores e maestros do seu tempo. Apesar disso, nenhuma obra de Bach tem o nome de qualquer deles. Porque raio haveria agora o mestre de se dar a esta simpatia? Trata-se de um mistério a sério.

Deixo-vos porém com a descontraída explicação do próprio Bach (perdoem-me por não acreditar nela):

“I had a chance to hear the rumor that Goldberg was doing excellent performance of that set of variations not only at the waiting room next to the bedroom for the Count’s sleep assistance but also in front of the audience of the Count’s intimate friends for enjoyment. It was said that the Count called it as ‘my variations’, but the world became to call it as ‘the Goldberg Variations’. Anyway I would allow that that work might be called as the ‘G’s Variations’ or ‘the Goldberg Variations’ in the future.”

 

 

 

III – Gould, ou o segundo Goetlib.

Glenn Gould

 

Genial e excêntrico virtuoso canadiano, Glenn Herbert Gould (1932-1982) aprendeu a tocar piano com a mãe, passou no exame final do Conservatório aos 12 anos e conquistou a glória aos 17, quando deu o seu primeiro concerto numa bela noite em Washington. Através das suas precoces e epilépticas interpretações de Bach, principalmente do Cravo Bem Temperado e, claro, das Variações de Goldberg, o menino louco que sofreu toda a vida de uma forma menor de autismo – a Síndrome de Asperge – arrebatou os críticos mais empedernidos e as audiências mais escolásticas durante uma década, para desaparecer de cena antes de fazer 30 anos.

Gould era amplamente conhecido pelas suas manias e tiques. Em estúdio, gemia, cantarolava e fazia estranhos movimentos corporais enquanto tocava e os engenheiros da produção áudio nem sempre conseguiam excluir esses ruídos das gravações. Insistia em ter controlo absoluto sobre todas as variáveis ambientais e técnicas da gravação, a começar pela a temperatura do estúdio, regulada com precisão e extremamente quente.

Entre os muitos episódios anedóticos sobre o talento do virtuoso de Toronto, conta-se que na primeira apresentação de um músico ocidental na Rússia soviética, em maio de 1957, Gould brilhou no palco do Conservatório de Moscovo, perante a surpresa de alguns curiosos que vieram ouvi-lo. No intervalo, a audiência extasiada saiu da sala para espalhar a notícia de um prodígio pelas ruas. Quando Gould voltou ao palco, o auditório estava lotado. Sviatoslav Richter, considerado por muitos o maior pianista vivo, assistiu com espanto. “Eu poderia tocar Bach tão bem”, disse Richter mais tarde a um amigo, “mas teria que praticar muito. Esse é o génio de Glenn Gould.” O compositor Dimitry Tolstoy declarou que “Gould era um alienígena nesta Terra. As pessoas simplesmente não podem tocar piano assim!””

Controverso e alienado, Gould alimentava patologicamente um complexo de perseguição, convencendo-se e tentando convencer os outros de que a figura do concerto público era uma “força do mal”, já que a plateia estava mais interessada num possível falhanço do artista do que no seu triunfo. A este propósito fez doutrina, a célebre “GPAADAK” (Gould Plan for the Abolition of Applause and Demonstrations of All Kinds).

A pérola documental da BBC que acompanha este texto – e que revela a interpretação quase integral da obra – mostra-nos um Gould regressado do seu exílio artístico, já cinquentão, com uma nova interpretação das Variações, muito crítica da sua juventude exibicionista e irreverente, mas ainda assim divina, literalmente divina.

 

 

 

IV – As Variações segundo Gould.

 

As razões da paixão de Glenn Gould pelas Variações são quase místicas e, melhor que ninguém, ele explica-as. Apesar de desconfiar da funcionalidade terapêutica das Variações, expressa um sentimento misto de rivalidade e de cumplicidade para com o estranho personagem e gémeo onomástico Goetlib Goldberg (não é por acaso que as variações são também conhecidas por Variações G). Para todos os efeitos, o pianista canadiano identifica-se com o jovem aprendiz: os dois são devotos, os dois são escravos, os dois são apóstolos de Bach, esse deus ex machina.

“Nobody Knows the reason why I chose the Goldberg Variations as the work for my recording debut. I have never told anything about it. The reason was too simple for me to explain it by pretending to be thoughtful. I should have been ashamed of saying it an enigma or a secret. Apart from superficial aspects, it has so profound meanings, like the way the Art of Fuge has principle four notes (B A C H) at the end of its unfinished work.”

“More than thirty years ago, at the moment I saw the score of the Goldberg Variations for the first time for me, I screamed in my mind ‘Oh! This is My Variations.’ right away. Surprisingly my initials were caved on the first two notes and the last two. Not only starting two notes but also ending two notes are G and G. I thought that J. S. Bach had prepared this kind of work especially for me, only for me. It was more than two hundred years before. The way it starts and lasts with the notes G and G should be related with an unknown secrets.
But according to the documents, the title ‘Goldberg’ was from a name. John Godlieb Goldberg was one of the private students of J. S. Bach, and this work was named after him as a popular name.”

“I felt a moving sense of rivalry toward Goldberg although he was only a historical existence, nothing more. On the contrary I could not ignore something similar which lies between me and him. Goldberg seemed to be born in Gudanisk, the northern part of Poland, I was raised in Toronto, the northern part of Canada. Those places may have some resemblance. He moved to Dresden the center of musical activities at that time, to be a musician. I did my debut in New York. Accidentally facial looks might be nearly the same. Unfortunately his portrait was never found, so it is impossible to identify this fact. As far as I know, he died in his 20s. His name has two Gs in initials. His initials are J.G.G. and mine is G.G. Actually I have ignored my middle name. But it is not the point. My name is Glenn Gould. So G.G. are my initials. Based on these two initials, I should be the due performer for the Goldberg Variations. He was only Jr.G.G. Anyway I am going to make this matter concealed. Ah! if Goldberg was not a name of a person but indicated a gold mine, I could have fully felt satisfied with the history of this work because of its musical richness.”

“If this work made a hit as a lullaby, it is very much suspicious that ‘Maestro’ Goldberg performed faithfully this sensational and bitter work.’ That is somehow exaggerated, but is what I thought about during my first recording. The sense of rivalry towards Goldberg was so strong. What can I do to be a due performer of this work? This question lead me to the realm of performing artists.”

 

 

 

V – Epílogo: um maestro entre dois prodígios.

As Variações de Bach serão sempre as Variações de Goldberg e de Gould. A peça está umbilicalmente ligada a estes dois intérpretes e sendo que não temos acesso, naturalmente, à performance do jovem criado do conde Hermann Karl von Keyserling (que de qualquer forma seria realizada em cravo e não em piano), temos que nos consolar com a mestria e a sensibilidade do posterior discípulo. Mas intérpretes à parte, esta magnífica obra de arte, peça fundamental na história da música, é ainda pouco ouvida, sendo praticamente desconhecida da generalidade das pessoas, mesmo daquelas que dedicam muito do seu tempo a ouvir música. Encostada à categoria de música erudita, as Variações sofreram com a taxonomia, que é injusta. Não é preciso ser nenhum erudito para apreciar a música de Johann Sebastian Bach. É só preciso gostar de música. E o primeiro andamento das Variações, por si só, é um manifesto encantatório, gentil para o ouvido e grato para a sensibilidade. É só uma questão de disponibilidade para parar e ficar a ouvir.