Os esforços conducentes à lavagem cerebral das massas, no que diz respeito à ciência, ocultam sempre, claro, as verdades inconvenientes e contraproducentes à narrativa oficial que os cidadãos leigos devem engolir cegamente, sob o risco de serem acusados de negacionismo, entre outras categorias da taxonomia utilizada para controlar o seu arbítrio. A ciência dos tempos que correm foi transformada numa variante gémea da religião e exige, sobretudo, fé. É por isso que as pessoas normalizadas pelos poderes instituídos gostam imenso de dizer nas redes sociais e nas conversas de café com que entretêm a sua ignorância que “acreditam na ciência”. Pudera.
Ora um dos axiomas mais inconvenientes que podem ser encontrados na história da Matemática foi estabelecido por Kurt Gödel, na terceira década do século XX, quando demonstrou de forma inequívoca e estruturalmente lógica que os sistemas matemáticos encerram inerentemente uma maldição: a de não conseguirem fazer prova da verdade factual.
A rábula é de desenvolvimento gradual e tem início, talvez, na segunda metade do Século XIX, quando Georg Cantor conjectura, na sua célebre Teoria dos Conjuntos, que nem todos os agregados de números infinitos são do mesmo tamanho. Há infinitos mais pequenos e infinitos maiores. Há Infinitos Contáveis e Infinitos Incontáveis. O aparelho escolástico da Matemática começa a oscilar perigosamente com esta surpreendente conclusão, oscilação essa agravada dramaticamente pela concomitante e desconcertante descoberta das geometrias não euclidianas, da fundamental imprecisão do cálculo e do paradoxo dos conjuntos que não se incluem a si mesmos, que é uma charada de fritar os miolos a qualquer um:
Imagine-se uma cidade com um único barbeiro que está sujeito a uma lei irrevogável: só pode barbear os homens que não se barbeiam a eles próprios. O Barbeiro pode portanto fazer a barba aos clientes que não se barbeiam a eles próprios, mas quem vai fazer a barba ao barbeiro? O barbeiro não pode fazer a barba a ele próprio porque só pode fazer a barba aos homens que não se barbeiam a eles próprios…
A crise positivista agrava-se no fim deste século com a cisão entre Henri Poincaré e David Hilbert sobre o rumo que a disciplina devia seguir: Poincaré, enfiando a cabeça na areia, defende que simplesmente se ignorem estes desvios esquizofrénicos ao suposto rigor purista da aritmética, enquanto Hilbert, tão realista como ambicioso, parece manter a firme certeza de que esses desvios devem ser integrados num infalível sistema de prova. E daí a célebre tirada que, se bem que carregada da pretensão académica que era sinal dos tempos, lhe serviu de epitáfio:
“Wir müssen wissen. Wir werden wissen.”*
Isto apesar dele próprio ter sido responsável pela criação de vários quebra-cabeças que deveras dificultavam a sua santa missão, como o famoso paradoxo do Hotel de Hilbert:
Imagine-se um hotel com quartos infinitos. Um dia, chega uma excursão de infinitos excursionistas. O recepcionista coloca cada pessoa em cada quarto. Mas no dia seguinte chega mais uma excursão de infinitos turistas. O recepcionista fica baralhado, mas há várias soluções simples para resolver o problema e esta é uma delas: os turistas infinitos da primeira excursão ficam nos quartos pares e os da segunda excursão nos quartos ímpares. Assim, caberiam pelo menos dois infinitos no mesmo hotel.
Seja como for, o célebre matemático de Königsberg (cidade prussa que já tinha oferecido ao mundo o génio de Kant) estabeleceu que o Sistema de Prova tinha que responder afirmativamente a cinco questões fundamentais, das quais destaco (como no clip em baixo faz o articulado e perito Derek Muller) apenas três, para que este artigo consiga manter o seu fim em vista:
1 – A Matemática é completa? Ou seja, há forma irrefutável de provar uma afirmação verdadeira?
2 – A Matemática é consistente? Isto é, estão eliminadas todas as contradições à sua estrutura formal?
3 – A Matemática é decisiva? Leia-se: há um algoritmo para decidir, dado qualquer enunciado matemático, se ele é verdadeiro ou falso?
Eis senão quando, entra no palco deste erudito bordel o proverbial Bertrand Russel, que na segunda década do Século XX decide aniquilar, com outro paradoxo, a contrariedade dos conjuntos que não se incluem a si mesmos e contribuir, decisivamente, com o épico Principia mathematica (inacabado e desenvolvido a meias com o seu professor Alfred North Whitehead) para um sistema de prova mais ou menos absoluto, que procura responder afirmativamente às premissas de Hilbert, fazendo recurso à invenção de um novo e sistemático, se bem que um pouco aborrecido, código universal para todos os ramos da Matemática.
A filosofia da Coisa estava assim mais ou menos estabilizada e os matemáticos de todo o mundo sossegaram, durante uns anos, na boa fé de que a sua querida disciplina podia e devia fazer prova da realidade cósmica.
Acontece porém e desgraçadamente que, em 1931, Kurt Gödel, talvez o mais talentoso matemático do século XX, tem o desplante de publicar os seus devastadores Teoremas da Incompletude, onde demonstra, até ver categoricamente, que não é bem assim que a Coisa funciona. Um completo sistema de prova é impossível. A Matemática (mais especificamente, a Aritmética) é incompleta e inconsistente, porque:
Teorema 1: “Qualquer teoria axiomática recursivamente enumerável e capaz de expressar algumas verdades básicas de aritmética não pode ser, ao mesmo tempo, completa e consistente. Ou seja, numa teoria consistente, haverá sempre proposições que não podem ser demonstradas nem verdadeiras, nem falsas.”
Teorema 2: “Uma teoria, recursivamente enumerável e capaz de expressar verdades básicas da aritmética e alguns enunciados da teoria da prova, pode provar sua própria consistência se, e somente se, for inconsistente.”
Gödel, um católico impenitente que passou a vida a querer introduzir Deus na equação, pegou na sintaxe da Matemática e transformou-a num elaborado exercício de numerologia para concluir que a prova pode demonstrar que a prova não existe. Não se trata de uma gralha: uma determinada prova, em Matemática, pode implicar a sua inexistência. Um afirmação pode ser verdadeira, mas indemonstrável. A verdade e a demonstrabilidade não são sinónimos. Hilbert estava enganado: Devemos saber. Mas dificilmente saberemos.
Haverá assim e invariavelmente um factor da realidade que transcende o cálculo científico.
E não fora o génio de Alan Turing, hoje não teríamos computadores, nem web, nem telefones espertos como o raio, nem gadgets nenhuns. É que depois de demonstrar que, para além de incompleta e inconsistente, a Matemática também não é decisiva, o jovem mestre de Cambridge acabou por resolver a mecânica do problema, isolando-o das engrenagens da engenharia informática e impedindo assim que a entropia dos Teoremas de Gödel contrariasse o bom funcionamento da parafernália tecnológica de que a humanidade parece tão desesperadamente necessitada.
E se chegaste ao fim deste texto, querida leitora, se tiveste a paciência e a curiosidade para aturares estes densos parágrafos, tolerante leitor, o melhor que podes fazer é assistires a este competentíssimo vídeo dedicado ao mesmo assunto, da autoria de Derek Muller, que é um dos melhores comunicadores de ciência que poderás encontrar por entre o ruído delirante e falacioso dos media contemporâneos.
Porque para saber de ciência, para “acreditar na ciência”, é preciso investir um pouco mais do que o valor mensal despendido na assinatura da National Geographic.
* “Devemos saber. Saberemos.”
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