Toda a gente que se interessa por astronomia sabe que o Hubble, telescópio orbital responsável pelas mais profícuas, bonitas e populares imagens do universo alguma vez captadas, teve um percalço inicial: quando foi colocado em funcionamento, os cientistas responsáveis pelo projecto tiveram ataques cardíacos em catadupa, já que o sagrado objecto parecia sofrer de estigmatismo e tudo o que podia fazer era captar imagens desfocadas. Por causa de um erro no ângulo de curvatura numa das lentes, o Hubble esteve em perigo de ser abandonado no espaço à sua inutilidade, mas acabou por ser arranjado e funcionar como se sabe, apesar do acréscimo de custos inerentes a uma missão do Space Shuttle que por lá passou e lhe instalou uma espécie de lentes de contacto, que resolveram lindamente o problema oftalmológico.
Ora, o risco de que algo semelhante acontecesse ao James Webb Space Telescope, o super-telescópio com que a NASA acaba de substituir o “velhinho” Hubble e que custou cerca de dez biliões de dólares e que foi lançado em Dezembro do ano passado, era bastante alto. Trata-se do telescópio mais poderoso da história dos telescópios, o maior que já foi alguma vez colocado em órbita, e um dos projetos de engenharia mais complexos e ambiciosos alguma vez tentados, destinado a testemunhar o nascimento de estrelas e galáxias nos limites observáveis do espaço-tempo e sondar planetas alienígenas em busca de sinais de vida.
Só o facto de ter que se dobrar para caber no foguetão onde foi transportado (o telescópio é do tamanho de uma casa) e depois, já em órbita, ter desdobrado dezenas de instrumentos delicados e sensíveis, em condições hostis, tirou o sono aos responsáveis pelo projecto. O intrincado processo, constituído por centenas de passos necessários para que o telescópio entrasse em operação, durou seis meses (!).
Além disso, os materiais que permitem que o gigante seja leve o suficiente para ser transportado para o espaço são do tipo orgânico, como tecidos, cujo comportamento não determinístico dificulta imenso a previsão e o controlo do comportamento dos mecanismos.
Houve muita gente a roer as unhas até aos cotovelos, nos últimos meses, considerando o registo catastrófico da NASA nos últimos anos. Mas apesar de alguns pequenos problemas, o mais avançado telescópio de sempre lá chegou ao seu ponto orbital no espaço e conseguiu desembrulhar a sua infindável parafernália de mecanismos com surpreendente sucesso, apesar da complexidade da máquina e da dificuldade técnica da missão libertar margens de erro assustadoras. Na verdade, a viagem correu tão bem e foi tão económica que o ciclo de vida do telescópio aumentou. Prevê-se agora que o bicho permaneça operacional durante uns bons vinte anos.
O investimento em recursos financeiros e temporais valeu a pena porque o James Webb consegue eliminar grande parte dos infravermelhos irradiados pelo universo, bem como a luz do Sol, da Terra e da Lua, de forma a que as lentes trabalhem numa santa escuridão e a baixas temperaturas. Desta forma, é possível captar imagens mais nítidas de objectos distantes, tão distantes como as primeiras estrelas e galáxias que nasceram depois do Big Bang, analisar a composição química das atmosferas de planetas exógenos, medir com mais rigor a velocidade a que o universo se expande e assistir à génese de todo o tipo de fenómenos siderais que até agora eram impossíveis ou muito difíceis de observar. As imagens que está teoricamente preparado para captar podem revolucionar a cosmologia contemporânea e refundar paradigmas sobre a natureza do universo, a sua escala, a sua idade, o seu movimento. Para além, claro, da prometida beleza espantosa dos bonecos que vai com certeza produzir.
As primeiras 4 imagens do Webb são espantosas. E já estão a contribuir para novas descobertas.
Oito meses depois de ter partido e sete depois de ter estacionado na sua órbita, a 1,5 milhões de quilómetros da Terra, o James Webb Space Telescope está em pleno funcionamento e em Julho a NASA divulgou as primeiras quatro imagens captadas pelo engenho, cujos mecanismos de observação conseguem atingir distâncias inéditas, penetrando no cosmos quase até ao momento da sua génese. As imagens são exuberantes e chegam-nos numa resolução nunca vista. Mas antes, um preâmbulo técnico.
O James Webb Space Telescope possui vários instrumentos de captação de imagem. As 4 fotografias que vamos ver resultam de captações feitas no espectro dos infravermelhos e 3 delas serão desmultiplicadas em duas perspectivas: a dos infravermelhos com um comprimento de onda mais curto, tiradas pelo instrumento NIRCam, e a dos infravermelhos com um comprimento de onda médio, tiradas pelo instrumento MIRI. A olho nu, o que podemos observar da realidade está naquele pequeno segmento que é ampliado superiormente e que inclui um reduzido espectro de ultravioletas e infravermelhos.
Agora as imagens.
Esta maravilha aqui representa a nebulosa NGC 3132, ou Southern Ring Nebula, na constelação de Vela, que reside na Via Láctea e dista cerca de 2.000 anos luz do nosso sistema solar. O objecto foi descoberto pelo astrónomo John Herschel em 1835 e é, por equívoco, apelidado de nébula planetária, embora na verdade não tenha nada a ver com planetas (como era redonda, parecia um planeta aos primeiros astrónomos). A NGC 3132 é uma nuvem de gases e poeiras libertadas pela anã vermelha no seu centro. A imagem em cima foi tirada pelo NIRCam e a de baixo pelo MIRI.
Apesar da escala de representação na página digital não permitir a observação das diferenças de resolução, percebe-se ainda assim a divergência espectral e qualitativa entre as imagens captadas pelo Hubble e pelo James Webb, comparando a mesma nebulosa fotografada pelos dois telescópios. O Hubble produziu esta imagem:
Ainda na nossa galáxia, eis um “pequeno” segmento da nebulosa Carina, a 8500 anos luz da Terra. Trata-se de uma das maiores nebulosas da Via Láctea e é visível a olho nu no céu do hemisfério sul.
Também formada por gases e poeiras, a Carina não resulta do decaimento de anãs vermelhas, mas como conglomerado de matéria difusa é um gigantesco berçário de estrelas. A imagem de cima foi captada com o NIRCam e a de baixo pelo MIRI.
Mergulhando mais profundamente no espaço-tempo, a 350 milhões de anos luz de distância da Terra, encontramos o “Quinteto de Stephan” um grupo de cinco galáxias localizado na constelação de Pegasus.
O grupo de cinco galáxias é aparente, porque uma delas, a da esquerda, dista de nós apenas 140 milhões de anos luz. Especula-se que o centro extremamente brilhante da galáxia avermelhada à direita da imagem em baixo se deve a um buraco negro massivo, que liberta mais energia de que 24 biliões de estrelas como o Sol.
A última imagem é a da realidade cósmica mais longínqua: um cluster de galáxias a 4.6 biliões de anos luz de distância. Esta é uma imagem de “campo profundo”. Se olharmos com atenção, há poucos milímetros neste enquadramento que não contenham uma galáxia e algumas delas estão mesmo muito, muito longe no vector do espaço-tempo. Como a expansão do Universo “estica a luz”, tornando-a mais vermelha, conseguimos perceber quais são as galáxias mais antigas pela sua tonalidade cromática.
Quanto mais penetramos nas remotas geografias cósmicas, melhor se percebem as diferenças na qualidade de imagem entre o Webb e o Hubble. Este mesmo campo profundo foi fotografado há uns anos pelo venerando telescópio, com um resultado bastante inferior:
E a propósito de remotas localidades cósmicas, o insignificante pontinho vermelho que está no centro da imagem em baixo (detalhe do “Campo Profundo” captado pelo do James Webb), é uma galáxia que está a cerca de 13,6 biliões de anos luz do nosso ponto de observação. Ou de outra maneira: estamos a vê-la como ela era há 13,6 biliões de anos. Já tem um nome, GLASS-z13, e é a galáxia mais antiga alguma vez fotografada pelo engenho humano.
Esta ancestral galáxia formou-se quando o universo era um bebé ainda, cerca de 300 milhões de anos depois do Big Bang, na época em que a física actual pensa que as estrelas se começaram a formar. A existência desta galáxia coloca assim muitas questões sobre o actual modelo de entendimento dos primeiros tempos cósmicos.
Curiosamente, esta descoberta foi feita mais ou menos por acaso, já que a imagem de que resulta procurava galáxias mais recentes. Quando o Webb se dedicar a focar e a abrir a exposição para as galáxias mais antigas, poderemos ter resultados verdadeiramente surpreendentes, conducentes a novas teorias sobre os primeiros milhões de anos da história do Universo.
E esta promessa representa apenas uma parte do que o James Webb pode fazer, porque para além da sua missão perscrutadora de estrelas distantes e de galáxias longínquas, o telescópio tem instrumentos que nos vão dar informações preciosas sobre exo-planetas. Essa tarefa ainda não começou. Vamos esperar para ver. Literalmente.
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