É claro que vivemos tempos em que a verdade dos factos e a fidelidade às evidências históricas não são significativas para a narrativa mainstream, mas a última iniciativa revisionista sobre o passado e transformista sobre a realidade da Netflix é completamente excessiva, mesmo para este fraudulento serviço de propaganda.

Depois de colocar uma actiz negra como líder de uma cidade viking numa série de ficção e representar Aquiles também como guerreiro de raça negra num outra produção realizada a meias com a BBC (com quem mais podia ser?), a Netflix subiu um patamar na escala da aldrabice e da lavagem ao cérebro das massas, apresentando, como produto documental, ainda por cima, esta versão alternativa de Cleópatra:

 

 

Não, Netflix, Cleópatra não era negra.

Cleópatra era grega, descendente de Ptolomeu, o general macedónio que Alexandre o Grande deixou no Egipto para fundar uma nova dinastia de faraós, a Ptolemaica. E assim sendo, não podia ser negra, como é óbvio.

Eis um breve resumo biográfico da vida desta infeliz rapariga, para aqueles interessados nos factos:

Cleópatra VII Filopátor (69 a.C./ 30 a.C.) foi a última monarca da dinastia Ptolemaica do Egito, descendente de Ptolemeu I Sóter, o general greco-macedônio que acompanhou Alexandre, o Grande, nas suas campanhas do médio oriente. Após a sua morte, o Egipto tornou-se uma província do Império Romano, marcando o fim do Período Helenístico que começou com o reinado de Alexandre.

É provável que Cleopatra tenha acompanhado o seu pai Ptolemeu XII em 58 a.C. durante o seu exílio em Roma, depois que uma revolta no Egipto permitiu à filha mais velha de Ptolemeu XII, Berenice IV, reivindicar o trono. Esta última foi morta em 55 a.C., quando o faraó retornou ao país com assistência militar romana. Quando morreu em 51 a.C., Ptolemeu XII foi sucedido por Cleópatra e pelo seu irmão mais novo, Ptolemeu XIII, como governantes conjuntos, mas um desentendimento entre ambos levou ao início de uma guerra civil. Depois de perder a Batalha de Farsalos na Grécia contra o seu rival Júlio César durante a Segunda Guerra Civil romana, o estadista Pompeu fugiu para o Egipto, que era um protectorado de Roma. Ptolemeu XIII ordenou a emboscada e o assassinato de Pompeu enquanto Júlio César ocupava Alexandria em busca dele. César, um cônsul da República Romana, tentou reconciliar Ptolemeu XIII com a sua irmã. Mas Potino, o conselheiro-chefe do faraó, considerou os termos do cônsul favoráveis à rainha, e assim as suas forças, que eventualmente caíram sob o controle de sua irmã mais nova, Arsínoe IV, cercaram César e Cleópatra. O cerco foi levantado por reforços no início de 47 a.C. e Ptolemeu XIII morreu pouco depois na Batalha do Nilo. Arsínoe IV foi exilada em Éfeso, e César, agora ditador, declarou Cleópatra e o seu irmão mais novo Ptolemeu XIV como governantes conjuntos. O ditador manteve um caso romântico com a rainha, que gerou um filho, Cesarião. Ela viajou para Roma como rainha vassala em 46 a.C.

Após o assassinato de César  em 44 a.C., Cleopatra tentou fazer Cesarião o herdeiro do ditador. Sem sucesso.

Na Terceira Guerra Civil entre 43-42 a.C., a rainha ficou do lado do Segundo Triunvirato formado por Octávio, Marco António e Lépido. Após um encontro em Tarso, em 41 a.C., Cleópatra envolveu-se com Marco António, que realizou a execução de Arsínoe a pedido dela e se tornou cada vez mais dependente da monarca egípcia para financiamento e ajuda militar durante suas invasões do Império Parta e do Reino da Arménia. As Doações de Alexandria declararam seus filhos Alexandre Hélio, Cleópatra Selene II e Ptolemeu Filadelfo, governantes de vários territórios, sob sua autoridade triunviral. Esse evento e o divórcio de Marco António da irmã de Octávio, Octávia, a Jovem, levaram à Última Guerra Civil da República Romana. Octávio investiu numa guerra de propaganda, forçou os aliados de António no Senado a fugir de Roma em 32 a.C. e declarou guerra contra Cleópatra. Depois de derrotar a frota naval de Marco António e Cleópatra na Batalha de Áccio, em 31 a.C., as forças de Octávio invadiram o Egipto em 30 a.C., o levando ao suicídio de Marco António. Quando a rainha soube que o invasor romano planeava levá-la para Roma e sumetê-la à humilhação da procissção triunfal, cometeu suicídio por envenenamento, ao contrário da crença popular de que foi mordida por uma víbora.

O legado da sedutora rainha sobrevive em numerosas obras de arte, tanto antigas quanto modernas. A historiografia romana e a poesia latina produziram uma visão geralmente polémica e negativa da monarca que permeou a literatura medieval e renascentista. Nas artes visuais, representações antigas de Cleópatra incluem a cunhagem de moeda romana e ptolemaica, bustos, relevos, esculturas, vitrais e pinturas. Foi tema de muitas obras na arte renascentista e barroca, incluindo esculturas, pinturas, poesia, dramas teatrais, como António e Cleópatra, de William Shakespeare, e óperas como Giulio Cesare in Egitto, de Georg Friedrich Händel. Nos tempos modernos, tem aparecido nas belas artes, na sátira burlesca, na banda-desenhada, em produções cinematográficas e em imagens de marca para produtos comerciais, tornando-se um ícone popular desde o século XIX.

E uma última nota: Cleópatra está cronologicamente mais próxima dos tempos actuais do que dos faraós egípcios que edificaram as pirâmides e não tem qualquer relação histórica ou genética com essa pujante e ainda hoje enigmática força civilizacional. Colocar a amante de César e de Marco António num enquadramento dos verdadeiros e originais faraós egípcios é o mesmo que representar Winston Churchill como almirante das Guerras do Peloponeso. E apresentá-la como de raça negra é comparável à figuração de Ronald Reagan como chefe de uma tribo aborígene.

 

 

Ainda assim, a relação entre os likes (25k) e os dislikes (304K) colocados no clip do trailer deste exercício fraudulento deixa espaço para ficarmos optimistas sobre a lucidez e o conhecimento histórico dos utilizadores do Youtube, Não admira que a rapaziada da Netflix tenha retirado os comentários da página onde o clip foi alojado…

Seja como for, não há limites para a fanfarronice e a desvergonha desta gente. E este novo modelo de propaganda que se apresenta como “documentário” não deixa margem para dúvidas sobre a clara intenção orwelliana de alterar os factos históricos em função das narrativas woke do presente. Porque – e não tenhamos dúvidas sobre isto – com base neste logro, milhões de jovens em todo o mundo vão passar a acreditar que Cleópatra era negra, desvirtuando assim a sua concepção de toda a história do Mediterrâneo clássico, do império alexandrino e da civilização greco-romana.