O cinema contemporâneo é, na sua generalidade, um artefacto que obedece aos caprichos ideológicos e comerciais da sua época. Constitui-se assim como um objecto impermanente e espúrio. ‘Casablanca’, não.
Na nona temporada de “Os Simpsons”, Bart e Lisa descobrem um velho rolo de película de 35 mm contendo um final alternativo ao clássico de Michael Curtiz “Casablanca”, de 1942. Nesta versão, Rick Blaine e Ilsa Lund – os personagens retratados por Humphrey Bograt e Ingrid Bergman na obra original – casam-se depois de Lund saltar de paraquedas de um avião para matar Adolf Hitler.
“Os Simpsons”, e a cultura pop em geral, está repleta de homenagens, referências e falsificações das actuações de Bogart e Bergman numa das fitas mais influentes da cultura ocidental alguma vez criadas. O “Play It Again Sam” de Woody Allen, em que o protagonista é assombrado pelo fantasma de Bogart, é outro, neurótico e egocêntrico, exemplo desse legado.
O que torna este filme assim único e amado de tal forma que, 81 anos depois, ainda enche salas de cinema na América e prende pessoas ao ecrã um pouco por todo o mundo? Por que é que uma fita assim antiga ainda seduz as pessoas quando Hollywood tem registado cada vez mais dificuldades em manter as suas tradicionais audiências?
Durante uma entrevista para o relançamento do 50º aniversário de “Casablanca”, Murray Burnett, co-autor do drama teatral do qual o filme é adaptado, disse que a história é “verdadeira ontem, verdadeira hoje, e verdadeira amanhã”. E é mesmo.
Enquanto o cinema contemporâneo segura periclitante a sua narrativa através de efeitos visuais excessivamente elaborados e entorpecedores da inteligência e por recurso a dogmas ideológicos já falidos historicamente, “Casablanca” emprega uma abordagem matizada à narração da história, transmitindo observações sobre a humanidade que têm sensibilizado as pessoas durante milénios. É uma rábula sobre a luta eterna do homem entre a gratificação dos seus desejos pessoais e o cumprimento das obrigações para com os seus valores morais, aqueles que dependem dele e a sociedade em geral.
A cidade marroquina de Casablanca é estabelecida como um oásis ainda não submerso pela maré aparentemente inescapável do nazismo que inundou a Europa e o Norte de África. Mas a obra não sobreviveu tanto tempo nem mantém o legado que mantém por ser um filme de guerra decente. O pano de fundo da guerra serve, no entanto, para elevar a parada ontológica da trama, que foi enquadrada em 1941, antes do envolvimento da América na guerra, e numa altura em que ninguém sabia realmente que desenlace teria o conflito. Esta incerteza acrescenta um nível elevado de tensão às interacções dos personagens.
Desde os primeiros momentos do filme, somos apresentados à cidade homónima como uma urbe esteticamente encantadora, onde pessoas de todo o mundo se aglomeram enquanto tentam espremer algo mais da vida. Por vezes o que procuram está simplesmente fora do seu alcance, outras vezes são surpreendentemente bem sucedidas. Estes fenómenos são retratados e espelhados pelo casino gerido por Rick, o protagonista do filme, onde a casa sai sempre a ganhar numa batota aleatória de pequenos triunfos e vãs esperanças.
A condição humana obriga o indivíduo a colocar-se na senda de um significado para a existência. O filme de Curtiz capta esse trânsito lindamente, ao representar a cidade magrebina como um purgatório cosmopolita e os seres humanos como indivíduos condenados e redimidos, entidades complexas, sem que se intelectualize em excesso o papel que desempenham na guerra ou se trivialize as lutas que travam intimamente. Uns penhoram heranças familiares por uma passagem para territórios mais seguros, outros preparam-se para entregar a vida em função dos valores em que acreditam, muitos jogam a incerteza na roleta viciada ou mergulham em nostalgias e fantasias ao som de um piano que serve transcendência em doses parcimoniosas. Embebedam-se todos apenas na tentativa de escapar por umas horas ao cerco do autoritarismo niilista e à angústia de existir.
As personagens de Curtiz são circunscritas ao dilema que surge entre fazer o que é melhor para eles como indivíduos e o que é moralmente correcto. Muitas vezes as duas construções sobrepõem-se, já que ajudar a família a escapar da Europa ocupada pode convergir com interesses financeiros individuais, por exemplo. Em alguns casos, os caprichos egotistas e os vícios relativamente inofensivos são gratificados, sem que ninguém com isso seja prejudicado, em última análise. Noutros, como acontece com Rick, as idiossincrasias individuais estão directamente em desacordo com as contingências de circunstância, pondo assim em marcha o enredo do filme.
Rick: o cínico altruísta.
Rick é apresentado como um indivíduo completamente cínico. Ao longo do filme, sempre que é solicitada o seu desinteressado cometimento, a resposta é: “I stick my neck out for nobody.” (“Não arrisco o pescoço por ninguém”). Mas rapidamente descobrimos que ele é na realidade um idealista que arriscou anteriormente o seu pescoço a lutar ao pela resistência etíope e do lado dos republicanos na Guerra Civil Espanhola, apesar de não ter qualquer interesse pessoal investido nas causas destas duas nações.
Apesar de ser um sentimental, Rick cansou-se. A sua desilusão é resultado de ter sido abandonado pela sua antiga amante, Ilsa. A reemergência desta mulher, com o seu marido líder da resistência, Victor Laszlo, força o gerente do casino a experimentar sentimentos de vulnerabilidade há muito tempo adormecidos, que foram reprimidos em favor de um cinismo de punho cerrado e defensivo.
À medida que a trama avança, Rick e Ilsa flutuam entre a vingança, uma vez que Rick se recusa a ajudar Ilsa e Laszlo a escapar à perseguição nazi, e a entrega romântica, na medida em que os dois se voltam a perder apaixonadamente e fazem planos para fugirem juntos, deixando o marido de Ilsa sozinho na sua missão de reunir e alistar grupos de resistência ao fascismo que mesmo na cidade livre é omnipresente.
Mas no último momento, quando os amantes têm a sua oportunidade para escapar, Rick sacrifica a sua própria felicidade no altar do “bem maior”. Percebendo que a companhia de Ilsa é crucial para o papel de Laszlso na resistência anti-fascista, o personagem interpretado pelo eterno Bogart opta por abandonar os seus planos e insiste que ela permaneça fiel e empenhada na missão nobtr e libertária do seu marido e na sua luta contra a tirania nazi na Europa.
Numa das cenas finais do filme, Rick deixa Ilsa com este recado de qualidade homérica: “Não tenho jeito para ser nobre, mas não é preciso muito para ver que os pequenos problemas de três pessoas não levantam sequer uma colina de feijões neste mundo louco”.
E então?
Ok, Rick perde a rapariga novamente, há um pianista que desenha belas melodias e o resto da malta embebeda-se para fintar a tirania. Qual é a importância disto? Como é que esta história é particularmente “verdadeira”?
Os dilemas vividos pelo elenco principal, mas também pelos personagens secundários, não são exclusivos da população de Casablanca nos anos 40: são experiências com as quais pessoas de todas as gerações se podem identificar facilmente e que reflectem dilemas morais que não são circunscritos a determinadas gerações ou predisposições circunstanciais.
Todos queremos uma vida melhor para nós próprios e para aqueles que amamos. Todos desejamos a experiência realizada e intensa de uma paixão assolapada. Mas também sabemos, mesmo que apenas instintivamente, que outros valores fundamentais, que contribuem com significado transcendente para a existência humana, podem entrar em conflitos com esses desejos. “Casablanca” desenrola-se precisamente nesse afiado gume entre o instinto e o dever.
O já e lamentavelmente falecido filósofo inglês Roger Scruton argumentou que a arte deve ter como objectivo oferecer uma perspectiva única e acessível sobre o mundo que desafie as convicções estabelecidas do público. Para ser justo, uma boa parte do cinema contemporâneo até pode ser divertida, até pode entreter e hipnotizar as audiências, mas não faz mais que repetir plataformas ideológicas dos poderes instituídos e respeitar fórmulas de sucesso comercial que são características da nossa época. Que impacto terão as actuais produções da Marvel nas audiências dos anos 70 do século XXI ou os filmes profundamente empenhados no neoliberalismo vigente e que ganham óscares a rodos só porque transmitem a “mensagem certa”? “Casablanca”, porém, existe na rara intersecção da cultura universal e da arte popular, encorajando as pessoas a ponderar verdades mais profundas, que não são vulneráveis ao trânsito das modas ou ao comissariado dos activistas. O filme excita e questiona a consciência que temos da nossa condição e propõe comportamentos que podem parecer sacrificiais ou meramente retóricos, mas que têm um inegável potencial redentor.
E é precisamente pela redenção que passam todas as grandes histórias já contadas, no atribulado percurso da civilização.
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