Um casamento, um funeral ou nem uma coisa nem outra.
O Casal Arnolfini é o mais famoso quadro do pintor flamengo Jan van Eyck, executado em 1434. A obra exibe o então rico comerciante Giovanni Arnolfini e sua esposa Giovanna Cenami, que se estabeleceram e prosperaram na cidade de Bruges (hoje Bélgica), entre 1420 e 1472. Desde que esta vanguardista e enigmática obra prima foi criada até aos dias de hoje não tem cessado de intrigar críticos e historiadores. E qualquer leigo que lhe dedique cinco minutos de atenção percebe porquê.
Para já porque no quadro não figuram duas pessoas, mas quatro (ampliando o detalhe do espelho no centro, ao fundo, está um outro casal). Quem são esses dois penetras? Seria de imaginar que o pintor se retratasse a si próprio, como o reflexo no espelho obrigaria. Mas à frente do personagem masculino está um feminino. E não se vislumbra a tela em que o pintor está a trabalhar. A presença de outro casal, meio oculto, numa representação de um casal é, no mínimo, de confuso significado.
Depois, a forma como os dois aristocratas dão a mão, com as palmas viradas para cima, é também surpreendente, tanto como a horrível gárgula que está colocada por cima desse incomum enlace.
As sandálias espalhadas pelo quarto, a representação do aristocrata descalço (a sua mulher também descalça deve estar, porque há 2 pares de calçado no chão) são também intrigantes, e que significado têm as laranjas, numa época em que a casa de Orange-Nassau estava ainda a um século de imperar nos Países Baixos?
Quanto mais observamos, mais detalhes enigmáticos prendem a nossa atenção, como se estivéssemos perante um infindo labirinto meta-linguístico: o candelabro do tecto, hexagonal, só tem uma vela acesa porquê? Na inscrição colocada na parede, por cima do espelho, lê-se: “Jan van Eyck esteve aqui em 1434”, que é uma das mais singulares forma de assinar uma pintura alguma vez registadas. E o que faz um Dragão na cabeceira da cama, mais a mais acompanhado por uma santa e uma… vassoura? A cena está recheada de objectos e acessórios vindos de países estrangeiros como a Rússia, a Turquia, a Itália, Inglaterra e França. Sinal de cosmopolitismo e opulência ou mais camadas simbólicas colocadas sob um trabalho que já de si é de feroz complexidade semióptica?
Peritos de todos os lugares e tempos têm atribuído diferentes interpretações a este quebra cabeças que Jan van Eyck deixou à posteridade: que é a celebração de um casamento, que é um elogio fúnebre à senhora Arnolfini, que é um tributo do pintor aos seus patronos, que é uma sátira a um casal de novos ricos com quem Jan nem sequer mantinha relações pessoais, que é uma espécie de exorcismo que clama pela fertilidade de um casal sem filhos, enfim, ninguém vai ficar esclarecido, mesmo com a mais detalhada análise que a erudição humana é capaz de produzir. A arte, quando se eleva a estes patamares de virtuosimo e criatividade, é difícil de decifrar. Como tudo o que consideramos divino.
A Virgem e o OVNI.
A “Madona e o Menino com o Infante São João”, de Domenico Ghirlandaio (mestre de Miguel Ângelo), é uma das obras mais misteriosas da história da arte. Não porque o tema seja incomum, pelo contrário, de Boticeli a DaVinci o Renascimento está carregadinho de representações da Natividade muito parecidas, mesmo muito parecidas com esta, mas por causa de um detalhe estranhíssimo: ao fundo, no segmento superior direito, podemos observar uma pequena figura humana que dirige o seu olhar para aquilo que só podemos qualificar, literalmente, como um objecto voador não identificado.
O artefacto assemelha-se a um disco metálico com uma espécie de cúpula, que parece emitir raios de luz. Esta morfologia, recorrente no imaginário contemporâneo do fenómeno OVNI, não tem porém paralelo nas artes plásticas da época em que a obra foi criada. Na verdade, não tem paralelo em qualquer época. E a testemunha ocular, que protege a vista da luz solar para melhor identificar o que não é identificável, poderia ser retirada do guião de “Encontros Imediatos de Terceiro Grau”, o famoso filme de Spielberg.
Para adensar o mistério, o sol, à esquerda, é representado com 3 brilhantes objectos adjacentes.
De acordo com os historiadores de arte, o disco voador é na verdade um anjo com a aparência de uma nuvem luminosa. De facto, embora seja inédita a representação de um anjo de maneira não antropomórfica, as Escrituras, especialmente os Evangelhos apócrifos, contêm descrições iconográficas semelhantes e em muitas pinturas do Renascimento florentino o tema da Natividade foi acompanhado pelo da Anunciação. Os três objectos celestes em redor do sol podem ser explicados pela representação da santíssima trindade, também comum a este género de obras.
Mas se esta última justificação parece sensata, a ideia de que o disco faiscante pode ser um anjo já não convence tanto. E quanto mais contemplamos o estranho, mas muito familiar objecto, menos convencidos ficamos.
A Ronda Diurna, com os heróis na sombra.
Mais conhecido por “Ronda Nocturna” (Sir Joshua Reynolds encontrou o quadro de tal forma degradado e enegrecido que calculou erradamente o horário da cena representada), esta é uma das mais famosas obras de Rembrandt, muito pelo seu proverbial jogo de luz e sombras, mas também porque o autor opta por fugir à norma da pose estática nas representações militares, optando por introduzir uma nota de movimento ao retratar o momento de partida para uma missão, cuja natureza se desconhece.
Apesar da obra ter sido encomendada por um ramo da milícia civil, Rembrandt opta por esconder os seus membros na escuridão e – não fosse o quadro ter sido literalmente mutilado no século XVII, com o intuito de caber numa parede (!) – poderíamos registar que até o percussionista colocado à direita (que não fazia parte da milícia e tinha sido pago para estar ali a compor a graficamente o boneco) surge com mais protagonismo que o pessoal miliciano. Não admira pois, que Rembrandt esperasse três anos até receber o pagamento pelo trabalho.
Velázquez e o mau feitio.
Na Primavera de 1650, Velázquez termina este fabuloso retrato de sua santidade Inocêncio X. Os vermelhos opulentos e os dourados majestáticos acompanham bem a expressão implacável de um papa violento e colérico, que desprezava profundamente o género humano, e que está aqui inteirinho, transpirando a bílis do seu terrível temperamento por todos os poros.
Talvez por se ver com tal rigor retratado, o soberano pontífice, revelando exuberantemente o seu carácter cabotino e a sua mesquinhez crónica, mostra-se deveras insatisfeito com a obra, queixando-se ao pintor que o trabalho estava “demasiado verdadeiro” e regateando o valor da compensação financeira contratada previamente.
Este desagrado perante a verdade, que vem sempre em demasia, ainda vive, como o fantasma de Inocêncio, no Vaticano dos nossos dias.
De que é as senhoras estão a falar?
“Whom did I meet? Nobody. I’d heard of Gertrude Stein, but I don’t remember having heard of Picasso at all. I used to go to the cafés at night and sit and watch. I went to the theatre a little. Paris had no great or immediate impact on me.”
Eward Hopper sobre a sua estadia em Paris, por volta de 1906.
Edward Hopper foi rei e senhor do império do subliminar e a sua obra estática enche-se de movimento na nossa inteligência. Foi o mago da geometria da alma na cidade deserta e as suas representações minimais tornam-se barrocas no nosso entendimento. Foi o realista supremo do silêncio e da inocuidade e as suas telas despidas adornam-se de trajes ocultos no quarto de vestir da nossa sensibilidade. Este introspecto e circunspecto génio da arte moderna, vingança iluminada da gente vulgar, virtual campeão da classe média americana, ele mesmo, a antologia da banalidade, que viveu em Paris nos dias de triunfo dos modernistas sem nunca dar com eles nas ruas e nos cabarets onde os procurava; que passeou pelas urbanidades todas da arte europeia sem deixar esperma nem receber dentada; Edward Hopper, esse lado obscuro da lua numa noite de lua nova, nunca afirmou coisa nenhuma: deixou apenas vestígios. Pistas. Suposições. Adivinhas. Charadas.
E de que é que estas duas senhoras estão a falar, enquanto esperam pela refeição tradicional chinesa à base de soja? A resposta está, truncada, no reclame do lado de fora da janela. Estas duas senhoras, de ar diletante e de sobremaneira entediadas pela intimidade comezinha do restaurante de bairro, conversam sobre sexo. Não é que esteja lá escrito com todas as letras, não. Mas está-se mesmo a ver.
O neo-realismo não é um realismo.
Aquela que é porventura a mais icónica obra de arte produzida na breve história dos Estados Unidos da América, é um verdadeiro manual de subtileza em transformismo e uma fabricação que só é perceptível se tivermos o cuidado de olhar com olhos de ver.
Em agosto de 1930, Grant Wood, passeava por Eldon, no estado americano de Iowa, procurando inspiração. Foi então que reparou numa pequena casa branca construída em estilo revivalista. Segundo um dos biógrafos do pintor, Wood achou a casa “uma forma de pretensiosismo emprestado e um absurdo estrutural, com uma janela em estilo gótico sobre a humilde e frágil estrutura de madeira”.
Após obter autorização dos proprietários – a família Jones – Wood executou prontamente um esboço a óleo sobre cartolina da vista frontal da casa. O esboço, inspirado nas catedrais góticas que o pintor visitara na Europa, caricaturizava as linhas arquitectónicas da casa original, exibindo um telhado mais inclinado e uma janela mais comprida, com um arco ogival mais pronunciado. Wood estava a levar a sua crítica inicial ao limite estético e as preocupações realistas com um qualquer retrato antropológico do Midwest americano, que ainda hoje muito boa gente lê nesta obra, não podiam estar mais longe da sua intenção.
A prova disto é que Grant Wood não fez figurar os reais proprietários da casa, mas sim “o tipo de pessoas que eu imaginei que vivessem nesta casa”. Para servir de modelo feminino, convocou a sua irmã Nan, mascarando-a com um avental de padrão colonial, que evocava a arte tradicional americana do século XIX; e para o personagem masculino, o seu dentista pessoal, o Dr. Byron McKeeby. Enquanto o esboço da casa foi realizada, parcialmente, no local, os modelos foram pintados em estúdio, e em sessões separadas.
Nan, talvez embaraçada por ser representada como a mulher de um homem com o dobro da sua idade, disse que o irmão idealizou o casal como pai e filha, em vez de marido e mulher, algo que o próprio Grant Wood confirmou numa carta que escreveu a uma admiradora:
“A cerimoniosa senhora que o acompanha é a sua filha adulta”.
A artificialidade da obra é reforçada por um conjunto de elementos que acentuam a sua verticalidade gráfica: a rígida frontalidade das duas figuras, as referências à arquitectura gótica, a forquilha de três pontas que tem continuidade na costura do macacão, nas rugas da face do homem, nos vasos do alpendre da casa, onde estão plantadas espadas-de-são-jorge e begónias, e no pináculo da torre de uma igreja, do lado esquerdo da composição por detrás das árvores.
O aparente realismo é totalmente fabricado. E Grant Wood, que ainda hoje é categorizado como um neo-realista/regionalista, estava-se completamente nas tintas para a prosaica paisagem do mundo material. A arte servia-lhe para inventar o seu próprio país de maravilhas.
Um triunfo sobre a imobilidade.
Há um desespero implícito, intenso, neste magnífico manifesto de Andrew Wyeth. Mas também sentimos qualquer coisa parecida com esperança. A personagem não se limita à resignação perante a paisagem desolada e movimenta-se. Procura atingir um qualquer destino, na imaterial geografia do futuro. Humilhação e glória. Fragilidade e redenção. Num rectângulo de 121.3 por 81.9 centímetros.
A mulher que rasteja sobre a erva seca era a vizinha da casa do Maine onde o célebre artista residiu durante uma boa parte da sua vida. Levada à imobilidade pela poliomielite, “estava limitada fisicamente, mas de modo algum espiritualmente”, explicou Wyeth.
“O desafio para mim era fazer justiça à sua conquista extraordinária sobre uma vida que a maioria das pessoas consideraria sem esperança”.
A poesia transcendente que o realismo mágico de Wyeth consegue produzir é de uma eloquência muda. As palavras não são necessárias. A vida, o sofrimento que lhe é inerente, e a determinação do espírito humano servem a arte com escrupulosa generosidade.
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