Ou o Livro das Horas do Duque de Berry,
em defesa e argumento da cromática medieval.
Ainda há muita gente que pensa em cinzentos quando retrata a Idade Média. Ainda há grandes cabeças que sonham um medievo inferno de fogueiras e um imaginário descolorido de cenografias. O que não falta é sapiens espertos que optam por ignorar a revolução comercial (mãe de todas as revoluções posteriores e a mais importante de todas, a bem ver, porque criou a burguesia), ou a invenção da polifonia, sem a qual os nossos ouvidos por certo morreriam de sede.
Mas a maior injustiça de todas é a de ignorar a génese das cores primárias. O mundo Medieval, como é encomendado por Jean Valois, o Magnífico, Duque de Berry e patrono das artes, neste seu livro das horas “Les Trés Riches Heures”, é um verdadeiro triunfo do Pantone. Vibram ultravioletas e contrastes, incendeiam-se cenários e guarda-roupas, tudo salta cá para fora num festim de cores directas. Ou o dito duque tomava ácidos ou algo está errado: não se conseguem observar trevas, é a luz que invade a retina.
Les Très Riches Heures du Duc de Berry (em português: As Muy Ricas Horas do Duque de Berry) é um livro de horas exuberantemente ilustrado. Foi encomendado por João, duque de Berry, aproximadamente em 1410. Provavelmente é o mais importante livro de horas do século XV, conhecido como lê roi dês manuscrits enluminés (o rei dos manuscritos iluminados).
São 512 páginas com trezentas letras capitais decoradas e cerca de 250 iluminuras a página inteira, que estão entre o que há de mais belo e expressivo no Gótico, não obstante o seu reduzido tamanho.
O livro demorou quase um século a ser concluído, tendo sido realizado integralmente em três diferentes momentos, por Barthélemy van Eyck, Jean Colombe e os Irmãos Limbourg. Entre o enorme espólio de obras de arte, destacam-se as representações dedicadas ao calendário, que retractam as actividades lúdicas, agrícolas e rituais relacionadas com as diferentes épocas do ano. Este livro de horas encontra-se actualmente no Château de Chantilly, em França.
Era comum num livro de horas a presença de figuras representando as estações do ano. Porém, as ilustrações dos meses no Três Riches Heures tem muito de inovador nos temas, na composição e na técnica de execução. Muitas das iluminuras mostram castelos do duque ao fundo, e são repletas de detalhes sobre os divertimentos e sobre os trabalhos de cada mês. Tanto os aristocratas da corte do duque como os servos das suas terras estão presentes nas representações do quotidiano e cada ilustração é encimada pelo hemisfério apropriado, pela carruagem solar, e pelos signos e graus do zodíaco, incluindo ainda referências aos santos e mártires da igreja católica.
Mas regressando aos equívocos da cultura popular sobre esta época, é claro que a percepção falaciosa que temos desta época é de razão relativamente prosaica: as pessoas confundem a Antiguidade Tardia com a Alta Idade Média, reduzem tudo à fogueira da Inquisição e à sua amplificação desmesurada, ao fascismo dos príncipes e à servidão da gleba, sem enxergar para além das pestes e das fomes. As pessoas não percebem, ou ignoram, que a Idade Média é ainda a época do Império Romano (do Oriente), esse Bizâncio criativo e prolixo que enfeitava com fausto grande parte de um Mediterrâneo hiperactivo e próspero, que dava os primeiros passos para o capitalismo liberal da modernidade.
E quem faz carreira académica à custa de uma visão conveniente e preguiçosa da história, devia ser obrigado a decorar as confissões de Santo Agostinho e as sumas de S. Tomás de Aquino e os argumentos de Santo Anselmo. Devia perceber as nuances na ética e na estética para depois não vir dizer que andámos quinze séculos com o Aristóteles às costas e sem imaginação nas carótidas. Não é credível a versão insuficiente, embrulhada em embalagem de mercearia escolástica, que comercializam os vendilhões da epistemologia.
É preciso, talvez, equacionar que essa tal tristonha, obscurantista, tenebrosa e fundamentalmente estúpida Idade Média deu génese àquilo a que hoje chamamos o Estado. Inventou a prensa e a imprensa, a novela, o relógio mecânico, a caravela, a fundição do ferro, o moinho de água. Aperfeiçoou a óptica e a arquitectura, desenvolveu a bússola e o astrolábio, revolucionou a cartografia, fundou as primeiras universidades, canonizou a arte poética.
É preciso olhar para estas iluminuras do bom duque e ver, através delas, um outro mundo médio. Uma outra escala de tons.
Relacionados
27 Nov 24
A sério: 6,2 milhões de dólares por uma banana e um bocado de fita adesiva.
É difícil de acreditar mas Justin Sun, um milionário das criptomoedas, pagou a quantia de 6.200.000 dólares por uma banana. E o que é mais: aparentemente, ainda não percebeu que foi aldrabado.
15 Nov 24
The Penguin: Uma pérola no esgoto de Gotham.
A série da HBO é muito bem contada, muito bem filmada e interpretada por actores que desaparecem, para nos deixarem a conviver apenas com os personagens, que sendo ratazanas da pior espécie, gratificam o espectador com a sua tangibilidade dramática.
26 Ago 24
Ninguém quer ver: Amazon cancela série de “fantasia maricas” que apresentava um rei inglês como negro, gay e deficiente.
"My Lady Jane", uma série da Amazon Prime que apresentava uma versão negra, gay e deficiente do rei inglês Eduardo VI, foi cancelada após apenas uma temporada devido à falta de interesse do público. E a Disney também cancelou "The Acolyte", pelas mesmas razões.
12 Jul 24
BBC escolhe “elenco racialmente diversificado” para drama sobre a Batalha de Hastings, travada em 1066.
Mais um exercício de ficção woke sobre a história do Ocidente: A BBC e a CBS uniram esforços para produzir um série que nos tenta vender a ideia de que entre os anglosaxões do século XI podiam muito bem ser encontrados condes subsarianos e guerreiros do caribe.
29 Jun 24
Alma Mahler ou a vingança de Pandora.
Biografias de Minuto e Meio: Magnética ninfa de alguns dos mais proeminentes intelectuais e artistas da sua época, Alma Mahler libertou o caos passional para cumprir a sua vontade irredutível. Uma mulher incontornável, na tortuosa história do século XX.
21 Jun 24
Os XX Dessins de Amadeu: Um poema épico a tinta-da-china.
Os "XX Dessins", de Amadeu de Souza-Cardoso, constituem um virtuoso ensaio gráfico, que evoca vastos imaginários das tradições ocidental, oriental e africana; de D. Quixote às Mil e Uma Noites. A obra, iniciática, é simplesmente sublime.