“Quinhentas ou seiscentas cabeças cortadas ter-vos-iam garantido descanso e felicidade. Uma falsa ideia de humanidade travou o vosso braço e suspendeu os vossos golpes; isso custará a vida a milhões dos vosso irmãos.”
Jean-Paul Marat

 

Esta é A Morte de Marat, de Jacques-Louis David (1748 – 1825). Pode parecer apenas mais uma pintura antiga, um retrato excessivamente dramatizado de um tipo que está a passar mal, mas na verdade é um mestrado em manipulação e uma das obras mais emblemáticas da Revolução Francesa.

Mas antes de analisar o trabalho de Jacques-Louis David, convém conhecer o homem que está a ser por ele representado.

Jean-Paul Marat (1743 – 1793) foi um médico, filósofo e cientista mais conhecido como jornalista radical e político da Revolução Francesa. De carácter impetuoso e comportamento rebelde foi incómodo tanto para as figuras do antigo regime como do novo. Defendia, através de seu jornal L’Ami du peuple (“O Amigo do Povo”), perseguições aos grupos políticos mais moderados, acusando-os de conspiração contra a revolução. Por isso foi também perseguido pelas elites e amado pelas massas, sendo um elo entre o povo e os jacobinos que subiram ao poder em Junho de 1793. Liderando um movimento de luta contra o grupo Girondino, tornou-se uma das três figuras revolucionárias mas destacadas em França, juntamente com Georges Danton e Maximilien de Robespierre. O draconiano extremismo e a defesa que fez das execuções ad hoc perpetradas pelos jacobinos levaram ao seu assassinato por Charlotte Corday, uma simpatizante dos Girondinos, com uma punhalada no peito quando se encontrava em sua casa, em ablução.

Jacques-Louis David, que era amigo de Marat, coloca-nos na cena do crime, onde vemos o corpo sem vida de Jean-Paul Marat caído sobre uma banheira. Marat sofria de uma doença de pele debilitante que deixava o seu corpo coberto de chagas e feridas inflamadas. Para aliviar a sua dor, passava horas a fio de molho num banho medicinal.

No chão, à esquerda do quadro, encontra-se a faca ensanguentada usada para apunhalar Marat no peito. A ferida, logo abaixo da clavícula, ainda está aberta e a sangrar e, se olharmos para a carta na mão de Marat, podemos ver o nome da sua assassina: Charlotte Corday.

Charlotte Corday era uma mulher de 24 anos da Normandia. Ela desprezava Marat porque o via como o principal instigador da violência revolucionária e da agitação política que varria a nação. Na sua opinião, a morte do revolucionário poria fim ao derramamento de sangue, enfraqueceria o poder dos jacobinos e salvaria a França. No julgamento, Charlotte Corday justificou os seus actos dizendo:

“Matei um homem para salvar cem mil.”

A ironia é que também Marat se regia pela mesma lógica niilista, como podemos constatar pela afirmação citada no início deste texto.

A beleza de A Morte de Marat reside na sua simplicidade. Não há pormenores opulentos, nem sinais de riqueza ou privilégio. David queria que Marat aparecesse como um homem do povo – humilde e altruísta, trabalhando incansavelmente para um bem maior. Marat é representado como uma figura santa, deitado pacificamente nos seus últimos momentos. Muitos historiadores de arte estabelecem paralelos entre esta composição e algumas representações de Cristo. Isto foi definitivamente deliberado por parte de David, elevando Marat a um estatuto quase religioso – um salvador da Revolução.

A morte de Marat foi devastadora para David, que chegou ao local do crime pouco depois do homicídio. Apesar do choque, o artista começou imediatamente a desenhar a cena em tempo real, utilizando observações em primeira mão e relatórios da polícia para captar todos os pormenores, escrúpulo que não o impediu porém de organizar o funeral do falecido jornalista.

A Convenção Nacional não perdeu tempo e encomendou a David a imortalização de Marat em pintura – não apenas para o homenagear, mas para transformar a sua morte numa poderosa peça de propaganda. E o artista cumpriu.

Inicialmente, o público teve uma opinião positiva sobre a obra de David. Mas não demorou muito para que, após a morte de Marat, a perceção pública sobre ele se deteriorasse.

Muitos levantaram dúvidas sobre os motivos do pintor, questionando como é que ele se podia opor tão fortemente à monarquia para depois apoiar alguém como Napoleão, que subiu ao poder pela força e que se corou imperador. Mas seja como for, e propaganda revolucionária à parte, a pungente intensidade desta obra, literalmente nua e crua, expressa claramente a dor de quem perde um amigo.