Está a correr na Apple TV um série que parece, pelo menos até agora, de decente fabrico e, apesar do insuportável Ben Stiller ser um dos produtores executivos, não cai na insanidade woke do costume, ou pelo menos não ao ponto de se tornar repelente.

Severance é um projecto que podemos localizar entre a ficção científica, o thriller e o mistério. Para não estragar a experiência ao leitor deste texto, diremos apenas que o essencial do enredo segue um pequeno grupo de empregados de uma empresa chamada Lumen, num mundo fictício em que foi desenvolvida uma tecnologia que permite que a consciência de uma pessoa seja essencialmente cortada ao meio, de modo que quando os funcionários estão a trabalhar num projecto muito vago e misterioso, na cave da sede da companhia, não se lembrem de nada sobre as suas vidas reais e quando não estão a trabalhar, não se  lembrem de nada sobre as suas vidas profissionais.

A situação cria, necessariamente, uma tensão ontológica entre os dois indivíduos que vivem no mesmo corpo, até porque, logo à partida, só pessoas com sérios problemas na sua vida real aceitam um emprego que implica, para todos os efeitos, a anulação de metade da sua experiência existencial.

O incisivo e lúcido Matt Walsh, única figura que sobrevive ética e intelectualmente sã ao projecto de propaganda sionista em que se transformou o Daily Wire, decidiu falar sobre o assunto e facilitar a tarefa ao ContraCultura, já que diz muito do que pretendíamos escrever sobre esta produção, sublinhando 3 factores fundamentais que concorrem para o interesse que a série tem suscitado no público:

É uma história original, se bem que inspirada em referências da cultura norte-americana (já lá vamos), ou seja, não repete fórmulas, não é prequela nem sequela de coisa nenhuma, não ofende nem reverencia legados.

– Polemiza questões interessantes sobre a natureza humana. Muito para além da recensão crítica à desumanização dos ambientes de trabalho contemporâneos, a série aborda assuntos de fascinante profundidade relacionados com velhas questões que nos têm atormentado e intrigado desde sempre: somos, como indivíduos, um produto fundamentalmente genético ou um produto eminentemente cultural? Dadas certas condições de tábua rasa, divergimos daquilo que somos ou permanecemos fieis a um destino, transcendente ou determinista? O que é que constrói a identidade de uma pessoa? É a memória que nos cristaliza como indivíduos? Somos a soma das nossas experiências ou a soma daquilo que recordamos das nossas experiências? É como diz Matt: estas são questões interessantes que nos deixam a pensar e qualquer produção televisiva que, nos estéreis dias de hoje, nos façam pensar, deve ser elogiada.

– O guião faz sentido e as coisas que acontecem têm consequências. A maior parte dos produtos de entretenimento contemporâneos produzidos na esfera ocidental têm guiões imbecis e inconsequentes. Ou nada acontece de relevante durante 90% do tempo ou, quando alguma coisa acontece, não tem consequências. A produção de Ben Stiller porém, é fiel a certas regras de ouro da escrita criativa para televisão e prende o espectador ao respeitar virtudes essenciais desta arte. A acção implica uma reacção (“uma coisa deve levar a outra”, nas palavras de Matt), os personagens têm um arco, a história apresenta um enigma que, supostamente, terá um desfecho. É muito simples na verdade: o guião faz sentido.

 

 

Ao que diz o pundit do Daily Wire, o Contra acrescenta algumas notas. Adam Scott, o actor protagonista, faz um trabalho notável (na intensidade emocional mais do que na dualidade que é intrínseca ao personagem, nos silêncios mais do que nos colóquios), os genéricos da série constituem por si só uma espécie de obras de arte digital, do melhor que tem sido visto nos últimos anos, e a banda sonora, da autoria de Theodore Shapiro, subtil mas de superlativa qualidade criativa e melódica, é por si só digna de nota.

Acresce que Severance tem por referência, para além de outras séries televisivas de diferentes géneros, como “Office Space“, “The Office“, “Lost“, “Dark” ou “DEVS“, o prolífico, sem bem que minimal, imaginário dos espaços liminares, que, como o Contra já documentou a propósito da genial produção independente de Kane Pixels, “Backrooms”, é um género creepypasta, baseado na lenda urbana de um labirinto de salas de escritório vazias e sinistras, de paredes amarelas, luzes fluorescentes e alcatifas humedecidas, que nos tempos da Web 1.0 serviam de ambiente para histórias de terror e jogos online.

A série não é perfeitinha, claro, e tem dois potenciais perigos: pode rapidamente descambar para o desastre woke e, o que nos parece neste momento mais provável, está de tal forma carregada de enigmas, que poderá acabar por não satisfazer a necessidade de respostas que injecta no espectador, fenómeno que é recorrente nas séries que assentam numa intensa e elaborada trama de mistério. Como aconteceu com “Lost” e com “Dark”, a intrincada rede de questões em aberto e paranormalidades com que somos perturbados pode chegar a um ponto de impossível resolução, implicando uma síntese deficitária que vai certamente frustrar o espectador.

A ver vamos se é isso que acontece ou se, por uma vez, nos dão respostas que satisfaçam convenientemente a curiosidade instigada.

Seja como for e por enquanto, trata-se de facto de um produto televisivo que está bem acima da média contemporânea, e cujo consumo o ContraCultura recomenda.