
Um Homem propõe-se a tarefa de desenhar o mundo. Ao longo dos anos povoa um espaço com imagens de províncias, de reinos, de montanhas, de baías, de naves, de ilhas, de peixes, de casas, de instrumentos, de astros, de cavalos e de pessoas. Pouco antes de morrer descobre que esse paciente labirinto de linhas traça a imagem do seu rosto.
Jorge Luís Borges . O Fazedor
Certo dia, invadiu o autor destas linhas a saborosa ilusão de compreender que a Visão tem Idades – um Mestre, sábio e paciente, foi transmissor desse diagrama oracular. Idades que não percorrem uma linha cronológica, estendida num plano horizontal imaginário sobre o qual se convencionou existir a recta graduada que vem do passado e se dirige ao futuro. Em vez disso, Idades que coexistem num ponto comum e num grau de desenvolvimento e expressão variáveis, cujo movimento permanente foi transposto para o lugar da representação por meio daquela linha cronológica, exiguidade ou eufemismo dimensional, de vocação cartesiana, que vela os diferentes planos onde actua a energia vital – a que por deleites do Espírito hoje interditos se chegou a chamar Deus – e, por seu intermédio, a potência da Visão.
Não, bem entendido, da visão enquanto fenómeno estritamente carnal, óptico, neuro-fisiológico ou anatómico, mas a Visão como complexo estruturante da Consciência e expressão transcendente do Ser nos múltiplos planos e dimensões onde evolui. Em suma, Visão enquanto Consciência olhando-se a si própria, florindo e frutificando, identificando-se reflectida num Universo que respira, onde espaço e tempo abandonam a topologia concreta convencionada, dando lugar ao ponto em movimento, o Aleph de J.L. Borges (1899-1986), espaço de conversão onde confluem as linhas de tensão com origem nos diferentes mundos onde habita imersa, em potência infinita, o Ver.
A primeira das três idades mencionadas é a do Olhar, a qual corresponde ao estádio de desenvolvimento da Criança, ao domínio do Inconsciente e ao despertar da percepção. A segunda, que corresponde ao Adulto, é a Idade do Observar. Dominada pelo Subconsciente e pela afirmação das sensações, esta Idade da Visão corresponde à fase de busca do semelhante e do mergulho da percepção no mundo contraído em dinâmica infinitesimal, segmentado, categorizado e especializado – o Reino da Quantidade, como lhe chamou R. Guénon (1886-1951) -, sobre o qual se estende uma rede vascular e fractal onde o objecto, agora definitivamente separado do sujeito, se projecta repetidamente, em escalas crescentes ou decrescentes, através de um mecanismo de espelhos e multiplicações de si mesmo até ao infinito.
Finalmente, a terceira Idade, a do Ver, correspondendo ao Idoso e dominada pela final sublimação da percepção e da sensação – a Ideia -, quando a Consciência manifesta toda a sua potência e encontra no mundo o reflexo de si, integrando-o por inata filiação ontológica, como manifestação universal e sincrónica do Próprio, do Semelhante e do Outro.
Depois disto, considera que o olhar varia naqueles que vêem, segundo a variedade da sua contracção. Na verdade, o nosso olhar segue as paixões do órgão e do ânimo. Daí que alguém veja ora como criança, depois como adulto e a seguir dum modo grave e senil. Contudo, o olhar desvinculado de qualquer contracção abraça simultaneamente e de uma só vez todos e cada um dos modos de ver, como se fosse a medida mais adequada e o modelo mais verdadeiro de todos os olhares; pois sem o olhar absoluto não pode haver o olhar contraído.
Nicolau de Cusa (1401-1464) . A Visão de Deus
BRUNO SANTOS
Relacionados
16 Mar 25
Contestando a interpretação sociológica de Max Weber.
Max Weber forneceu algumas contribuições valiosas para a compreensão da sociedade moderna, mas o seu pensamento deve ser questionado por uma abordagem conservadora, que valoriza a tradição e os fundamentos morais da ordem social. Um ensaio de Walter Biancardine.
13 Mar 25
Alexandre arenga as tropas:
o discurso de Ópis.
O mais célebre discurso militar da história, registado por um cronista romano cinco séculos depois do facto, é um mestrado em retórica que quase nos permite escutar a voz de Alexandre e da sua indomável vontade de conquista.
11 Mar 25
Analisando Schopenhauer: Entre a inteligência e o sofrimento.
A visão de Schopenhauer sobre a relação entre inteligência e o sofrimento é excessivamente pessimista. O sofrimento existe, mas pode ser ordenado e atenuado pela razão, mas também pela tradição, pela religião, e pela ética. Um ensaio de Walter Biancardine.
9 Mar 25
O bom, o belo e o verdadeiro.
Valores transcendentais e imutáveis, o bom, o belo e o verdadeiro não devem ser dissociados, mas restaurados e preservados como um legado precioso para as gerações futuras. Um ensaio de Walter Biancardine.
8 Mar 25
A Ilíada, Canto XXII: a morte de Heitor e a ira de Aquiles.
No Canto XXII da Ilíada ficamos a saber que, quando a guerra e a ira desequilibram a balança do destino, o mais digno dos homens pode ter o mais desonroso dos fins, e o mais divino dos guerreiros pode persistir na infâmia.
22 Fev 25
O Retrato de todos nós
"O Retrato de Dorian Gray", de Oscar Wilde, constitui-se como uma das mais contundentes críticas literárias à decadência moral promovida por um hedonismo desenfreado. É por isso importante revisitar a obra. Um ensaio de Walter Biancardine.