“America is a hustle.”

The Penguin

 

Se excluirmos certas produções chinesas e, sobretudo, coreanas, não é fácil encontrar de entre os milhares de subprodutos que as plataformas de stream oferecem às massas, qualquer coisa que proporcione algo parecido com entretenimento decente. O mercado audiovisual da terceira década do século XXI é estéril, altamente politizado e criativamente deficitário, ao ponto de nos perguntarmos se os guionistas sabem alguma coisa sobre a arte de contar histórias, se os realizadores percebem que o objectivo é entreter em vez de doutrinar, ou se os actores entendem que devem interpretar personagens em vez de se representarem a si próprios, num onanismo enjoativo, gratificante apenas para os seus gigantescos egos.

Há excepções, graças a Deus e ainda que raras. E The Penguin é uma. Tendo como fundamento conceptual o universo da DC Comics e  iniciando a narrativa onde a célebre trilogia Batman de Christopher Nolan termina, com a metrópole de Gotham destruída por um atentado terrorista, a série da HBO captura também o legado de Joker para nos oferecer um spin off protagonizado por um vilão que na verdade tinha sido até aqui praticamente esquecido ou relegado para a dimensão anedótica por Tim Burton em Batman Returns, infeliz momento cinematográfico em que o personagem é destruído por um circense Danny Devito.

O ‘Pinguim’ de Collin Farrell, feito irreconhecível por várias e espessas camadas de maquilhagem e latéx, é porém uma manobra performativa completamente diferente. No processo de mascarar o actor consegue-se de facto a proeza de nos esquecermos dele. O que temos agora é Oswald Cobb, apenas. E Oz não podia ser um crápula mais tangível. Não podia ser mais humano, na sua intrincada construção ficcional. Não podia ser mais contextual: é um puro produto de Gotham, e literalmente uma criatura do esgoto urbano, que é o seu ecossistema natural.

 

 

Um dos elementos mais notáveis na criação de Lauren LeFRanc é a relação que se estabelece entre o ‘Pinguim’ e o espectador. Logo nos primeiros momentos do episódio inaugural percebemos, mesmo que despojados de informação anterior sobre o personagem, que Oz é um tipo muito pouco recomendável, a despropósito falacioso e a propósito de um insulto capaz de matar. Na progressão da série, estamos constantemente a ser confrontados com o facto de o protagonista ser um criminoso impenitente, portador de um carácter abominável, e quanto mais sabemos sobre ele, num crescendo que termina em apoteose psicopata, mais certos ficamos da sua ignomínia. Mas, ainda assim, Oz é quase simpático. Torcemos por ele, na verdade. Percebemos verdades na sua falsidade. Adivinhamos justificações, na sua vilania. Iludimo-nos em seu favor, mesmo conscientes da realidade luciferina da sua natureza. Dir-se-ia que, por ausência do actor, desesperamos por encontrar identificação com o personagem, mesmo quando ele trai qualquer expectativa de redenção.

Mas, convenhamos, a série desenrola-se na perdição de Gotham. E, como também acontece com o Joker de Todd Phillips, a cenografia urbana ganha uma nova dimensão quando é deserta de super-heróis. Quando ficam só os vilões e as suas vítimas, desenhando diagonais trágicas no tabuleiro de xadrez distópico de uma cidade condenada. Em The Penguin, Gotham transcende o âmbito cénico e ganha verdadeiro estatuto de personagem: é a causa última e primeira de todos os males; é a imagem cuspida da destruição, da miséria, da injustiça; é a mãe de todos os filhos da puta. Porque se Oz sobrevive teimosamente e apesar dos constantes alertas ao critério ético do espectador, é porque está rodeado por uma fauna de ratazanas mais ferozes do que ele (ou, pelo menos, é nesse axioma que o espectador quer acreditar). Com a honrosa excepção de Victor Aguilar, um órfão adolescente que Oz resgata das ruas e ao qual parece afeiçoar-se (outra ilusão em que caímos fatalmente), não há uma alma sã neste cosmos de necrófagos.

Em The Penguin somos confrontados com pais que enfiam os filhos no terrífico hospício de Arkham, não por serem loucos, mas por serem clarividentes. Com mães que contratam mafiosos de esquina para abater os seus filhos. Com irmãos que matam irmãos. Com polícias mais bandidos que os bandidos. Com políticos mais corruptos que os mafiosos, numa espécie de exagero apocalíptico do mal que circula desenfreadamente pelos interstícios da condição humana.

Neste universo de hienas, até o amor filial decorre de uma espécie perversa de egotismo. E porque não há em Gotham ascensão social sem comércio da alma, a ambição do ‘pinguim’, esse aleijado da vida – porco, feio e mau na possilga do mundo – só tem um caminho: o das trevas.

Os oito episódios desta série são assim um produto híbrido entre o pesadelo e a consolação. No fim, o amargo de boca é quase insuportável e em todo o percurso da narrativa não nos é oferecido qualquer vislumbre de salvação. Mas a história, amigos, é muito bem pensada, muito bem contada, muito bem filmada e, enfim, prodigiosamente interpretada por actores que não querem mais que encarnar os formidáveis personagens que lhes foram atribuídos. E isso, nos tempos que correm, já é lenitivo quanto baste.