Os portugueses sempre conviveram bem com o facto de viverem no rabo da Europa. O progresso, a prosperidade, as virtudes do iluminismo e as conquistas do liberalismo demoraram o seu tempo a cá chegar, é verdade, mas também as guerras com que os povos civilizados da Europa se entretinham ciclicamente chegavam atrasadas, enfraquecidas ou não chegavam de todo. As pestes demoravam. As más notícias também.

Sempre soubemos, no nosso íntimo, que este  isolacionismo de bárbaros não era assim tão mau como isso. Até porque se podia dar o caso dos bárbaros não sermos nós. Foi aliás esse nojo do convívio com as nações da Europa, essa teimosia salazarista que em séculos antecede Salazar, que afinal nos permitiu permanecer íntegros de fronteiras durante mais tempo do que seria razoável projectar, considerando a insignificante porção de território, a modéstia geográfica e o carácter estruturalmente deficitário da economia.

Tanto mais que desde cedo os povos lusitanos sempre tiveram a reputação de serem não só incivilizados como de resistirem à civilização. Na verdade, mais do que os romanos, foram os árabes que conseguiram, se não na totalidade, em grande parte civilizar este território do extremo ocidental da Península Ibérica. Quando foram expulsos, porém, a mistura de iberos romanizados, moçárabes, visigodos, vândalos e francos que por aqui ficou recaiu na Síndrome de Asperger que perfaz historicamente a portugalidade e que, com raras e breves melhoras, diagnosticou assertivamente o povo e a nação até ao início do século XXI.

E se decidimos entretanto levantar a vela para o turismo de outras paragens, foi também porque preferimos a companhia de povos alienados dos conceitos grandiosos da civilização europeia. Com esses outros bárbaros, demo-nos razoavelmente bem, abrimos feitorias, fizemos filhos às mulheres deles, e deixa-mo-los com uma língua que lhes permitiu o entendimento inter-tribal, com a palavra de Cristo, com o direito romano, o asfalto das estradas, o cimento das escolas e a misericórdia dos hospitais. Para um povo ignorante, intratável, selvagem e demograficamente diminuto, não nos saímos nada mal.

Ora, esse doce privilégio de ser marginal foi finalmente vencido pelo neo-liberalismo. À terceira década do Século XXI, Portugal já não é um país atrasado, alheio às grandes proezas progressistas e tudo o que acontece no Ocidente sucede agora, em tempo real, no nosso país.

Somo hoje uma nação definitivamente civilizada, como as grandes nações da Europa, e a velocidade a que a pandemia chegou a Portugal, bem como os mandatos de confinamento e de vacinação, e a sua respectiva obediência – recordista – por parte do povo pátrio, são disso evidência material.

Mas se reticências ainda pontuassem a opinião dos cépticos sobre esse avanço progressista, os recentes acontecimentos do Bairro do Zambujal mostram sem sombra de qualquer dúvida que somos tão pós-modernos como os pós-modernos podem ser. Já temos no go zones nas nossas cidades. Já temos vastas áreas urbanas onde impera a multiculturalidade e a Lei da Sharia. Já temos motins raciais com turbas que incendeiam impunemente as artérias dos subúrbios e destroem infraestruturas a seu bel-prazer, com legitimidade institucional e aplauso da opinião publicada.

 

 

Já temos estadistas e jornalistas e peritos e líderes de opinião que condenam a polícia por fazer o seu trabalho e que a querem diversificar, como acontece nesses paraísos vanguardistas cujo impulso liberal já há décadas é invejado pelas elites políticas e empresariais do nosso país.

 

 

Já temos uma população híbrida, com Ramadão no Martim Moniz, tiroteios entre etnias e vídeo-vigilância por todo o lado. Porque a diversidade é uma força de progresso e Portugal progride a olhos vistos.

Já tem a Terceira República um Estado Corporativo (como o da Segunda, mas de pernas para o ar), que actua de mãos dadas com as grandes empresas e a imprensa na prossecução do objectivo de civilizar o que pensamos e o que dizemos. Supremos líderes internacionais como Keir Starmer e Justin Trudeau já não olham para Portugal como um país pária e quase invejam o nosso comprometimento para com a religião neo-liberal.

Já temos as massas nativas devidamentes domesticadas e esterilizadas (os imigrantes que tenham filhos), hipnotizadas pelo futebol e pela brilhantina dos centros comerciais, viciadas em telemóveis e assustadas por fascismos pré-fabricados, dependentes do Estado como os heroinómanos dependem da heroína.

E assim, o que é feito e dito na Europa, é imediatamente feito e dito em Portugal, sem desfazamentos nem anacronias de ordem política ou cultural. Afinal, vivemos numa aldeia global e Portugal não podia continuar alheio aos triunfos do aldeamento.

O Admirável Mundo Novo, quando amanhece, é para toda a gente.

 

AFONSO BELISÁRIO
Oficial fuzileiro (RD) . Polemista . Português de Sagres

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As opiniões do autor não reflectem necessariamente a posição do ContraCultura.