Lançado no fim de 2023, “Godzilla Minus One” conquistou o mundo. Produzido com um orçamento inferior a 15 milhões de dólares (muito baixo, considerando os padrões actuais), a fita rendeu à Toho Studios cerca de 100 milhões só nas bilheterias das salas de cinema.

Claro, os fãs de Godzilla aguardavam ansiosamente a celebração do 70º aniversário do Rei dos Monstros, mas simplesmente não há um número suficiente desses maníacos para explicar por que raio é este filme japonês foi um sucesso.

A quantos grandes lançamentos de Hollywwod é que temos assistido nos últimos cinco anos que foram simplesmente horríveis? Inúmeros. Quase todos os produtos filmícos da “cultura pop” actual dão prioridade à ideologia em vez da narrativa. “Minus One” não o fez e foi recompensado.

É claro que “Minus One” também tem fundamentos ideológicos, na medida em que Godzilla surgiu como uma metáfora para a devastação cultural e física causada pelos bombardeios nucleares de Hiroshima e Nagasaki. Mas não se inclina para o comunismo e a ideologia de género e as insuportáveis (des)virtudes woke, nem pretende doutrinar ninguém, como acontece com a maioria dos filmes contemporâneos. Em vez disso, explora o custo psicológico da culpa, o trauma do sobrevivente e a importância da família, da comunidade e do sacrifício em nome de valores que são transcendentes ao individuo.

Seja como for, para explicar o sucesso do filme, temos que sintetizar a sua história, pelo que fica o aviso de que este texto contém spoilers.

 

 

O filme começa com a deserção do protagonista, Kōichi Shikishima, que abandona o seu posto de piloto kamikaze durante os dias finais da Segunda Guerra Mundial. Enquanto vive atormentado por uma ambivalência neurótica entre o dever e a recusa da missão suicida, a ilha onde se refugiou é atacada pelo enorme réptil. Shikishima, tendo a oportunidade de atacar Godzilla com o seu Mitsubishi Zero, é dominado pelo medo, e todos, excepto ele e o técnico-chefe Sōsaku Tachibana, são mortos – um facto pelo qual Tachibana o considera pessoalmente responsável.

Ao voltar para casa, encontra Tóquio bombardeada e recebe a notícia da morte dos seus pais e de muitos dos seus vizinhos, Shikishima é forçado a reconciliar-se com o facto da incapacidade de cumprir o seu dever – desertando como piloto kamikaze ou impedindo a violência inicial de Godzilla – lhe ter permitido viver enquanto outros morriam.

No difícil processo de adaptação à vida civil, Shikishima envolve-se com uma jovem destituída, Noriko Ōishi, e a criança órfã que ela adoptou. A partir daqui, Shikishima encontra trabalho num draga-minas para sustentar a sua namorada e o seu filho adoptivo, enquanto, sem o conhecimento do mundo, Godzilla é atingido pela radiação dos testes nucleares dos EUA no Atol de Bikini.

Atormentado pela culpa do sobrevivente e acreditando que sua vida é uma maldição para a qual o único alívio é a morte, Shikishima continua assombrado por visões do seu encontro inicial com Godzilla e é incapaz de baixar a guarda e conectar-se verdadeiramente com a jovem pela qual está apaixonado, e com a criança que é agora também da sua responsabilidade.

Entretanto, o irradiado Godzilla sofreu uma mutação. Agora é consideravelmente maior e possui novas e terríficas capacidades que não apenas lembram Shikishima do seu trauma passado, como também o horrorizam de novas maneiras. Para Shikishima, a guerra nunca terminou; ele ainda está em combate com os fantasmas de seu passado, enquanto o avatar de sua angústia ameaça a sua nova vida e a própria existência da civilização.

Depois de sair do oceano e entrar no Japão, Godzilla devasta o distrito de Ginza, em Tóquio. Noriko, a caminho de um novo emprego na cidade que provavelmente não teria aceitado se Shikishima tivesse sido capaz de superar os seus problemas e casar com ela, é aparentemente morta no processo. Na sequência dessa destruição, uma aliança de voluntários reúne-se, empenhada em eliminar o monstro e dada a inacção governamental.

O grupo elabora um plano para esmagar Godzilla, enviando-o para o fundo do oceano com a ajuda do gás freon. Mas Shikishima, agora dominado pela dor, planeia secretamente atingir o mostrengo com um avião de combate cheio de explosivos, projectando-o directamente no único ponto fraco conhecido do corpo de Godzilla, o interior de sua boca. Ele contacta Tachibana, alista-o na causa e, totalmente preparado para morrer, deixa o seu filho adoptivo aos cuidados do vizinho.

Shikishima vê esta nova missão kamikaze como uma forma de finalmente acabar com a guerra. Um desígnio que lhe permitirá cumprir o seu dever original como piloto kamikaze e vingar todas as mortes pelas quais se sente responsável. Mas apesar de ter procurado uma morte honrosa que lhe permite a redenção, Shikishima não quer morrer. Detectando nele essa réstia de amor pela vida, e respeitando a coragem que teve para continuar vivo apesar de todo o seu sofrimento, Tachibana insiste que Shikishima seja ejectado do avião antes da explosiva colisão com Godzilla. A honra para Shikishima está em cuidar do seu filho e em continuar a ajudar aqueles que confiam nele.

O plano corre mais ou menos como pretendido. Shikishima é capaz de ferir Godzilla mortalmente e evitar a morte. Ele reencontra-se com o seu filho e descobre que Noriko sobreviveu ao ataque de Ginza, e os três avançam como uma família quando a guerra de Shikishima finalmente chega ao fim.

É claro que os efeitos especiais são espectaculares e, considerando o orçamento de produção, dignos dos mais rasgados elogios. É claro que Godzilla é um bicho tentador para a imaginação dos públicos e os cenários apocalípticos que são desenvolvidos a propósito do tema atraem inevitavelmente grandes audiências. Mas ‘Minus One’ é muito mais que um filme visualmente exuberante. Conta uma história que reúne elementos profundamente enraizados na alma humana: crime e castigo, virtude e redenção, medo e coragem, amor e desespero.

É óbvia afinal a razão pela qual o público gostou tanto de “Minus One”. Além de ser visualmente deslumbrante e não tentar doutrinar politicamente os espectadores com falsas virtudes woke, o filme proporciona às audiências uma história cheia de nuances, carregada de emoção e centrada em personagens com quem nos podemos identificar, cujas motivações entendemos bem, e que enfatizam matizes profundas da experiência humana que as pessoas percebem como reais, mesmo num filme de ficção científica em que o vilão é um mostrengo surrealista.

Godzilla Minus One é puro entretenimento. Mas é também uma história muito bem contada. Que respeita os cânones da narrativa épica e da novela clássica. Que acredita na capacidade de transcendência da espécie humana. E isto, nos tempos que correm, não é dizer pouco.

O Critical Drinker concorda.