Quando Napoleão fugiu de Elba em 1815, a sua marcha para Paris foi travada por 6.000 soldados franceses sob o comando do Marechal Ney, que tinha prometido a Luís XVIII trazer “o monstro” para a capital francesa numa gaiola de ferro. Napoleão marchou em direcção aos soldados, abriu o casaco, deu o peito e declarou: “Se há algum homem entre vós que queira matar o seu imperador, aqui estou eu!” Os soldados responderam com: “Vive l’Empereur!”
Se esses soldados tivessem visto o filme “Napoleão” de Ridley Scott, teriam ajudado Ney a enfiar Bonaparte na jaula com prazer. Não é que o filme pareça barato (o orçamento de 200 milhões de dólares é óbvio) ou que lhe falte o talento das grandes estrelas. O que acontece é que Ridley Scott não quis fazer um filme sobre Napoleão, mas sim um objecto ficcional que retrata as tendências woke contemporâneas em traje de época.
Qual é o tema do filme? É sobre a hubris, em última análise destrutiva, de um homem que quis conquistar o mundo? Não, porque o Napoleão de Joaquin Phoenix não parece ser muito ambicioso. Ele faz algumas coisas arrojadas, sim, mas quase sempre depois de alguém lhe ter posto a ideia na cabeça. O derradeiro sobrevivente, Tallyrand, sugere que Napoleão se declare rei, e três cenas depois vemos a sua coroação como imperador (nunca nos é dito porquê imperador e não rei).
Será que a longa metragem procura desenvolver a transcendência e aleatoriedade do destino? Também não, porque embora este Napoleão de Scott acredite que o destino já escreveu a sua vida (“O destino deu-me este bife”, diz à sua mulher, Josefina, depois de ser coroado), ficamos apenas com declarações do género anedótico e nada de substantivo que explore essa temática.
As vitórias do exército francês nas guerras napoleónicas seriam as ocorrências ideais para explorar esta ideia, mas apesar de todo o marketing que o filme trazia sobre as suas cenas de batalha, Scott dá-nos muito pouco disso. Toulon e Austerlitz são pouco exploradas, e Borodino termina após uma carga de cavalaria em câmara lenta. Waterloo, a batalha que termina de uma vez por todas com os sonhos de Bonaparte, recebe a maior atenção, claro, porque o objectivo do filme é diminuir o seu protagonista, mas, nessa altura, é demasiado tarde para desenvolver o tema.
A pressão do tempo.
Parte do problema aqui é a duração do filme. Quer se ame ou odeie a figura do imperador francês, a sua vida foi uma daquelas raras odisseias dos “grandes homens da história”, repleta de aventuras, conquistas, contrariedades, glórias e misérias. Um filme que pretendesse contar a sua vida de 1798 a 1821 teria de ter seis horas de duração ou pelo menos ser dividido, ao estilo de “Dune”, em duas partes, com a coroação de Napoleão a marcar o fim do primeiro filme e a sua morte em Santa Helena a terminar o segundo, por exemplo.
Em vez disso, com 158 minutos, o filme é apenas 30 minutos mais longo do que “Waterloo”, de 1970, que, como o título indica, lidava apenas com a essa batalha e os seus preparativos. Assim, somos levados de uma cena para outra, saltando por cima de grandes acontecimentos (a Guerra da Sexta Coligação, que durou 14 meses e que muitos académicos consideram uma das campanhas mais brilhantes de Napoleão, é totalmente ignorada), e Scott opta por uma saída preguiçosa para compensar o tempo insuficiente. Toda a campanha do Egipto, por exemplo, é condensada numa bala de canhão disparada contra a pirâmide de Khafre (evento que nunca chegou a acontecer), simplesmente porque isso mostra economicamente que Napoleão tomou o Egipto e que era um bárbaro sem nome.
Uma nota: a campanha de Napoleão no Egipto foi também uma expedição de carácter científico e historicista, que incorporava 160 académicos que basicamente iniciaram o estudo da civilização faraónica no Ocidente. Mas para Ridley Scott estes são factos inconvenientes à narrativa, que importa esconder das massas.
Hiperventilação no campo de batalha.
Ironicamente, mesmo que nos fosse dado tempo suficiente para conhecer todos os personagens envolvidos na acção e uma maior fatia da existência de Bonaparte, o filme sofreria ainda mais. Os realizadores de fitas biográficas podem não gostar das figuras históricas que retratam, mas devem esforçar-se por compreender as suas motivações e assim tentar suscitar alguma simpatia por parte do público. Scott renuncia a isso, não esconde o seu desdém pela figura que retrata e, em vez de substituir o Homem-Destino por um Homem-Complexo, contenta-se com o Homem-Millenial.
Este é um Napoleão que hiperventila no campo de batalha e se esforça por matar um único soldado britânico, que se dedica febrilmente a jogos estúpidos no seu gabinete em vez de planear campanhas, que atira comida às pessoas que o irritam durante os jantares de Estado e que grita impotente quando é ultrapassado em retórica, ou na arte da guerra. Nenhum dos seus pontos positivos – a sua curiosidade e erudição, o Código Napoleónico, o patrocínio das artes e das ciências, o alexandrino génio militar e administrativo – é sequer sugerido. De facto, ao ver o Napoleão de Phoenix, pensamos como é que um tipo como este poderia ter chegado alguma vez a imperador de França, quanto mais a conquistador de uma boa parte do continente europeu.
Esta conclusão que se contradiz pelos factos é reforçada pela religião woke de que Ridley Scott se tornou devoto (momento que coincide com o seu declínio como cineasta), e que faz de Josefina a personagem que encarna afinal a força por trás do mito napoleónico, e que é retratada por uma apropriadamente gélida Vanessa Kirby. Napoleão não a persegue, nem a conquista, claro está. Josephine deixa-se levar pelo estranho “herói de Toulon”, que a olha de forma sinistra e se comporta como um perverso subscritor de uma conta do Only Fans.
E enquanto Napoleão chora durante o divórcio (uma imperatriz estéril é um risco para o império), Josefina ri-se da pomposa propaganda produzida para o decreto oficial.
“Não passas de um bruto que não é nada sem mim ou sem a sua mãe”, diz ela a Napoleão, um mantra que o obriga a repetir e que se torna profecia: A derrota russa ocorre imediatamente após o seu divórcio e Waterloo após a sua morte. Nem mesmo a morte pode deter o poder de Josefina. “Devo levar-te de volta?”, pergunta-se ela em voz-off, enquanto Napoleão está confinado em Santa Helena. A senhora está sempre em vantagem. Scott chega mesmo a fazer com que a vida de Napoleão lhe seja arrebatada pela ex-mulher, com a voz de Josefina a sussurrar “Vem a mim, Napoleão”, antes do corpo do imperador exilado sair de cena.
Uma caricatura da masculinidade.
Tudo isto é sintomático da maior falha de “Napoleão”. O seminal realizador soviético, Dziga Vertov, articulou a ideia de kinopravda (literalmente “cinema-verdade”). Segundo Vertov, a verdade cinematográfica exige a filmagem de ambientes reais (em vez de “burgueses”) e uma edição que revele a verdade mais profunda da existência, impossível de ver a olho nu. Por outras palavras, Vertov exigia que o cinema fosse poesia visual, raspando camadas do mundo material para permitir que o público visse a verdade transcendental subjacente.
Muitos dos filmes anteriores de Scott – “Alien”, “Blade Runner”, “Gladiador”, até mesmo o seu “Robin Hood” – abraçaram esta ideia e incorporaram a verdade cinematográfica em diferentes graus. Aqui, porém, não há nenhuma. Todas as oportunidades de mergulhar na metafísica do homem, do destino, do orgulho, da ambição, do curso da história e da interação entre esta e a vontade niilista são contornadas para que tudo o que reste seja uma caricatura unidimensional.
É claro que foi esse o objetivo desde o início.
Não é por acaso que o Bonaparte de Scott se vinga no chapéu – um proeminente ícone napoleónico – num gesto simbólico de fraqueza e frustração, enquanto Moscovo é queimada à sua volta. Às tantas, a impressão que se tem é que o verdadeiro saco de porrada de Scott nem sequer é Napoleão, mas qualquer homem forte e ambicioso.
Para Ridley Soctt já é suficientemente grave que os homens de hoje tenham que recuar ao Império Romano para encontrarem exemplos elevados e gratificantes de masculinidade, por oposição aos modelos impingidos nos 360 graus da indústria cultural contemporâneo pela máfia do arco-íris. Não podemos correr o risco de que avaliem com um mínimo de objectividade e rigor histórico um homem que, exclusivamente graças à sua determinação, argúcia, talento político e génio militar, redesenhou o mundo no princípio do século XIX. Ele tem de ser esmagado, o Grande Homem tem que ser conduzido à condição de Pequeno Homem. A “democracia” exige-o.
Mesmo que a História, e a Sétima Arte, sejam sob esse mandato sacrificados.
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