Aquela que é alegadamente a “obra de arte” mais influente do pós-modernismo, que definiu uma era e lançou polémicas infindas, era um objecto do quotidiano tão banal que foi frequentemente extraviado ou confundido com um mono para deitar no lixo. Em 1917, entre uma série de pinturas e esculturas cubistas, fauvistas, expressionistas e futuristas, o comité de selecção de uma exposição aberta em Nova Iorque recebeu um urinol de cerâmica. Era vulgar em todos os aspectos, excepto no facto de alguém o ter datado, assinado e nomeado: chamava-se Fountain (Fonte).
Esta é a história de 3 embustes: a peça de louça sanitária não era, não é e nunca será, arte; não foi assinada pelo artista que a apresentou, Richard Mutt, que nunca existiu sequer; e também não é produto da “criatividade” de Marcel Duchamp, a quem foi atribuída durante décadas, com a activa cumplicidade do próprio.
Mas vamos por partes.
Antes, um pedido de desculpa: o leitor vai encontrar neste texto mais palavras cercadas por aspas do que é desejável. Acontece que o léxico pós-moderno chama arte ao que não é artístico, obra ao que não foi criado, peritagem à ignorância e assim sucessivamente até à ausência de significado dos vocábulos, pelo que não nos resta senão assinalar esses termos de deturpada semântica com o instrumento de pontuação que merecem.
A “obra” mais influente da arte contemporânea.
O autor a quem se atribui a piada de mau gosto que viria a dar origem à arte conceptual pós-moderna foi Marcel Duchamp (1887-1968). Duchamp era um artista francês que tinha chegado a Nova Iorque alguns anos antes e estava muito bem relacionado com a decadente elite da cena da arte moderna nos EUA. Já tinha passado pelas fases do Pós-Impressionismo e do Futurismo e tinha sido co-fundador do movimento anti-arte Dada. Os dadaístas produziam poesia sem sentido, utilizando palavras aleatórias e encenavam espectáculos bizarros. Zombavam da tradição, minavam a confiança na autoridade e ridicularizavam a moralidade dominante. Foram o primeiro grupo a adoptar uma posição absolutamente niilista. Movimentos como o Beat, o Situacionismo, o Punk, o Pós-Modernismo, e uma dúzia de outras correntes da expressão artística posteriores canalizaram (conscientemente ou não) o antagonismo Dada face à cultura mainstream.
O comité da exposição recusou-se a expor a “escultura” de R. Mutt, por não ser considerada arte. Mais tarde, o galerista e fotógrafo Edward Stieglitz tirou uma fotografia do objecto e a imprensa bem pensante começou a discutir a rejeição de Fountain. Entretanto, o original perdeu-se. Inicialmente, o Caso da Fonte foi um incidente divertido, discutido pelos historiadores de arte, mas considerado sem importância. Mas a atribuição da “obra” a Duchamp estabeleceu-se nos anos 20 e a autoria nunca foi negada pelo francês.
No início dos anos 60, uma nova geração de artistas, em busca de uma resposta ao domínio da pintura abstracta de método gestual, decidiu que, em vez de produzir arte, poderiam simplesmente reciclar objectos pré-existentes e classificá-los como artísticos. Estes chamados readymades são objectos que têm o estatuto de arte conferido pelo artista – uma ideia que já tinha sido de facto incorporada em Fountain. O readymade tornou-se central para a Arte Conceptual, que veio a dominar a expressão plástica a partir da década de 1960. Em 2004, Fountain foi considerada fundamental para a arte contemporânea e foi eleita pelos “especialistas” como a “obra mais influente da arte moderna”.
No entanto, talvez tudo isto se tenha baseado numa mentira.
A verdadeira “artista”.
Em Art Exposed, um livro publicado a 2 de Novembro deste ano, Julian Spalding sugere que a Fountain não teve origem em Duchamp, defendendo que a ideia foi da baronesa Elsa von Freytag-Loringhoven (1874-1927), uma poetisa e artista que à época fazia parte do grupo dadaísta americano.
Numa série de artigos escritos para o boletim informativo de arte The Jackdaw, o professor de arte e escritor Glyn Thompson examinou as ambiguidades em torno de Fountain e as declarações vagas de Duchamp sobre o objecto. Spalding resume as provas de Thompson no seu livro.
Duchamp afirmou por várias vezes que Fountain não tinha grande significado e que era uma piada direccionada ao mainstream artístico. Em 1917, escreveu à sua irmã isto:
“Uma das minhas amigas, sob um pseudónimo masculino, Richard Mutt, enviou um urinol de porcelana como escultura”.
Não entrou em pormenores. Esta frase sugere obviamente que Duchamp não é o “autor” da diatribe. Tanto mais que von Freytag-Loringhoven tinha um historial de acções deste tipo; e até já tinha nomeado um readymade que consistia numa junta de canalização dentro de numa caixa de madeira, desgraçadamente intitulado Deus.
“Duchamp roubou-lhe a obra”
Numa entrevista recente, Spalding faz uma crítica contundente a Duchamp:
“Duchamp roubou o trabalho dela cinicamente porque não tinha exposto nada na altura, e precisava de fingir que o tinha feito, se queria afirmar-se como um dos Pais Fundadores da Arte Moderna. E alterou o seu significado ao afirmar que não tinha significado – excepto por ser uma crítica à própria arte – o que não era certamente o caso. O seu crime é duplo – não só roubou uma obra de uma grande artista, como também roubou o seu significado”.
O critério de Spaldind sobre o que constitui “um grande artista” é deveras discutível, tanto como a sua noção de “significado”, mas como ex-director dos museus de Glasgow, Manchester e Sheffield, é a primeira figura com algum estatuto no mundo da arte a corroborar a tese de Thompson. Levando os argumentos das páginas de The Jackdaw, de Thompson, para o The Guardian – através de um artigo escrito pela jornalista de arte Dalya Alberge – Spalding trouxe esta disputa para o conhecimento do público. Irene Gammel e Siri Hustvedt, que não são historiadoras de arte, já apoiaram publicamente a tese de que Freytag-Loringhoven será a “autora”, mas Spalding e Thompson são especialistas em arte e têm um peso especial.
No entanto, Spalding não despreza a arte moderna como um todo, nem mesmo a Fountain, onde consegue observar, vá-se lá saber através de que lentes, “qualidades escultóricas”, para além das inevitáveis “virtudes” políticas:
“Foi a primeira grande obra de arte pacifista e feminista do mundo. O Urinol de Elsa era uma escultura – como Duchamp disse na altura – enquanto os seus Readymades não eram para ser lidos como esculturas (eram trocadilhos verbais) e não foram expostos de todo.”
O que é que, exactamente, foi “esculpido” na latrina? Spalding não explica.
Pelo menos em relação à arte conceptual e aos readymade, o crítico cede ao senso comum:
“Este conceito era muito apelativo para os igualitários, pois retirava a arte do seu pedestal, destruía a sua exclusividade e tornava-a acessível a todos, mas também minava qualquer tentativa de fazer juízos de valor sobre a qualidade da arte.”
A sério? Não é preciso ser director de museus e crítico de arte para chegar a esta brilhante conclusão.
O poder da inércia, do comércio e da ideologia de género.
Thompson e Spalding lutaram para suscitar o interesse em considerar Fountain como uma “obra” de Freytag-Loringhoven. Mas a inércia é uma lei bem real da termo-dinâmica. A tarefa de rever dezenas de milhares de livros sobre o Modernismo, muitos dos quais falam de Fountain e reproduzem a fotografia de Stieglitz, não é exequível. Mais difícil ainda é conseguir que milhões de pessoas em todo o mundo reatribuam mentalmente Fountain a uma “artista” obscura, sobre a qual nada sabem.
Spalding refere a resistência encontrada pelos apoiantes de Freytag-Loringhoven, atribuindo esta intransigência a interesses entrincheirados no ecossistema da arte moderna:
“Milhares de reputações profissionais em todo o mundo da arte foram investidas na Arte Conceptual, acreditando que era a Próxima Coisa na História da Arte Moderna. Aqueles que a questionaram foram marginalizados durante décadas e não estão em posições de autoridade”.
Além disso, há uma relutância em manchar a reputação de Duchamp, cujos readymades valem muito dinheiro. Nos anos 60, Duchamp autorizou 17 reproduções de Fountain. Uma delas foi vendida em leilão em Novembro de 1999 por 1,76 milhões de dólares. Os coleccionadores têm que proteger zelosamente os seus investimentos, por muito desastrosos e equivocados que sejam.
A Tate defende a actual atribuição de Fountain a Duchamp, argumentando que
“Parece improvável que Freytag-Loringhoven não se tenha vangloriado da criação de uma obra que causou tanto interesse na imprensa”.
O argumento é frágil. Fountain era pouco conhecida na década de 1920 em Berlim e Paris, para onde Freytag-Loringhoven se mudou depois de deixar Nova Iorque. Morreu em 1927, muito antes da peça alcançar fama mundial e a apropriação por Duchamp se ter tornado praticamente universal.
Ainda assim, o status quo pode mudar, mas por um motivo relacionado com a cultura woke que domina as elites académicas e económicas: o feminismo. O caso de Freytag-Loringhoven pode ganhar força pelo simples facto de ela ser uma mulher (embora, para o clero woke, o facto da senhora ser branca seja lamentável). Os defensores das mulheres artistas adorariam reivindicar para Freytag-Loringhoven o duplo prémio de autora de uma “obra de arte” icónica e o “prestígio” de ser a fundadora da Arte Conceptual.
Dentro do contexto dos tempos que correm, não é a verdade dos factos que importa, mas a “verdade” da política.
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