“Não sou um pintor valentão, como me chamam, mas sim um valente pintor. Isto é: que sabe pintar bem e imitar bem as coisas naturais.”
Michelangelo Merisi (Caravaggio)
Michelangelo Merisi, nascido no Ano do Nosso Senhor Jesus Cristo de 1571 em Caravaggio – código postal Bérgamo – é um daqueles super heróis do renascimento tardio que merecem ser revisitados. Vítima de ter nascido à morte de Leonardo e criança ainda no apogeu de Michelangelo Buonarroti (azar dos azares pelo qual trocou o seu nome de baptismo pela onomástica da pequena aldeia Lombarda que lhe serviu de berço), Caravaggio é – certificadamente – um génio eleito pelos deuses das artes visuais. E, talvez, um dos primeiros agentes daquilo a que chamamos hoje cultura alternativa ou contracultura.
Enquanto Roma – como qualquer outra cidade estado da península itálica – fervia ainda em lume brando o espanto de ter renascido esteticamente das cinzas de mil anos, já o desmancha prazeres contradizia e disputava a filosofia estética dominante. Caravaggio achava que os seus mestres e colegas faziam batota, porque não retratavam realisticamente os cenários bíblicos, a figuração humana e a comédia de costumes que é o quotidiano das pessoas comuns. A violência, imanente na existência, é omissa. O sangue não salpica, como deveria, as telas do Renascimento. A traição e o medo, a dor e a crueldade, o burlesco e o disforme, as sombras que circulam nos intestinos do destino fazem falta à arte que quer ser fiel à Criação divina.
Cristo não viveu, nem morreu, por entre anjos e aristocratas, querubins e pontífices, demónios e magistrados, santos e príncipes. Toda a gente sabe disso porque está escrito no Novo Testamento que o Filho Primogénito do Senhor preferia – para o bem e para o mal – a companhia de putas e pescadores, bandidos e músicos de feira, soldados e verdugos, vagabundos e agiotas. Em Mateus 2:17 o messias diz:
“Não são os que têm saúde que precisam de médico, mas sim os doentes. Eu não vim para chamar os justos, mas os pecadores”.
E exactamente o mesmo pode ser dito de profetas e iniciados do Antigo Testamento.
Ora se os dois almanaques sagrados são deveras explícitos, que raio, seremos de tal forma snobs e púdicos, botas de elástico e sonsos que nos recusamos a pintar a mitologia como ela foi de facto experimentada no campo? A heresia está em ignorar a escumalha porque a escumalha é o fruto favorito e massificado do criador. Não se louva a Deus com cosméticas de sacristia nem se serve Jesus se levarmos o seu carrasco à manicura. E é com esta valentia, é com esta determinação que nasce o Naturalismo. Caravaggio excomunga a onírica renascentista e as suas referências mainstream oriundas da arte clássica para colocar as pessoas da rua na iconografia cristã. Mas – muito importante – vai mais além e preocupa-se essencialmente em capturar o sofrimento implícito nos episódios bíblicos. Abre-se assim um caminho para a representação do intenso esgoto ontológico que é parte substantiva da História Universal.
Ele mesmo sabia daquilo que estava a pintar: Inimigo dos clássicos, mas personagem de tragédia, homem de porradas e duelos, de confrontações e tumultos, Caravaggio envolve-se durante a sua curta e atribulada presença no mundo dos vivos num turbilhão de brutalidades e ódios e perseguições e desventuras. Preso frequentemente por pancadarias em bordeis, que deixavam vítimas muitas, e por insultos à arte sacra, que perturbavam a glória dos tempos e a sensibilidade dos mecenas, este verdadeiro forcado da existência nunca se cansou de segurar a vida pela pega mais afiada.
Claro que quem vive no gume acaba por sofrer cortes profundos e em 1606 Caravaggio – num gesto socialmente desastrado – assassina um nobre por causa de um jogo de pallacorda (parece que este nem sequer foi o único infeliz que terá sucumbido às suas mãos). Uma coisa era matar um tipo qualquer numa tasca imunda. Outra era espancar um aristocrata até ao fim dos ossos num elegante court de ténis. Expulso de Roma e proscrito em grande parte da cartografia itálica, os quatro anos que lhe faltam cumprir são dignos de Homero: de fuga em escapadela, de perdão em traição, de desilusão em desespero, Caravaggio vai correndo a Itália em direcção à morte.
Ainda pinta bastante, mas sobretudo foge. E quando finalmente é perdoado e convidado a deixar o exílio, dá-se um daqueles equívocos de Odisseia que deitam tudo a perder, para que ganhe apenas o diabo um companheiro mais: por uma questão de saias ou por outra de vinganças, comparece lamentavelmente tarde demais ao barco da libertação; de tal forma que chegam a Roma somente os seus haveres (que serão confiscados) e as notícias, nada exageradas, de que o peregrino cineasta do grande plano, o druida entre magos do enquadramento fechado e gráfico, o sumo patriarca da luz e das sombras (aqui já há Rembrandt), o primeiro ministro de todos os realismos, Michelangelo Merisi, conhecido por amigos e inimigos pelo nome da aldeia em que nasceu, morre, com 39 breves anos, numa praia deserta em Porto Ercole – Código Postal Grosseto – no Ano da Graça do Nosso Senhor de 1610.
Terá sido assassinado. Terá sido suicidado. Terá sido julgado e condenado sumariamente pelos seus crimes. Ou terá morrido de cansaços. Não interessa realmente. Enquanto foi vivo, fez por transcender a morte. E de que maneira.
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