É espantoso, mas ainda há realizadores de vontade independente, na anglo-saxónia. E Guy Ritchie, que já foi responsável por hediondos sub-produtos como “Swept Away”, ou pela destruição cinematográfica de míticas personagens como a de Sherlock Holmes, Aladino ou o Rei Artur, e que sempre gostou de glorificar criminosos, com diferentes registos qualitativos que vão do péssimo “Revolver” ao excelente “Snatch”, parece ter encontrado, aos 55 anos, um caminho pacificador.
“The Covenant” (“O Pacto”) a sua última realização, é uma bela e intensa história de amizade, lealdade, sacrifício e redenção, escrita com sobriedade e espírito, filmada com pudor e intenção classicista e interpretada com rara competência, que constituirá muito provavelmente o ponto alto da carreira de Ritchie.
O argumento é de simplicidade linear, no cruzamento entre a realidade e a ficção (aqui há spoilers): Quando o exército americano se retirou vergonhosa e desastradamente do Afeganistão em 2021, abandonou centenas de intérpretes afegãos que tinham arriscado a vida a trabalhar contra os talibãs. Em vez de obterem vistos para se mudarem para os EUA, como lhes tinha sido prometido, pelo menos 300 intérpretes foram mortos pelas forças islamitas. A história específica que Ritchie conta é fictícia, mas bastante plausível: O sargento John Kinley (Jake Gyllenhaal) está a trabalhar com o intérprete Ahmed (Dar Salim), nas profundezas do território controlado pelos talibãs, quando Kinley é ferido. Num trajecto de carácter épico, Ahmed consegue transportá-lo por 100 quilómetros de sofrimentos até à segurança de uma base aérea americana. O sargento é devolvido ao conforto da sua pátria enquanto Ahmed fica literalmente entregue aos porcos, sendo obrigado a viver na clandestinidade, já que os atrasados mentais que tomaram o poder no país o têm como presa preferencial, e simbólica, por se ter prestado a ajudar, num esforço homérico e altruísta, um soldado americano. Quando John Kinley recupera do ferimento, já na América, e percebe que o seu impossível anjo da guarda ficou atrás das linhas inimigas, inicia um processo de perseguição pela virtude e pela honra que tem como obstáculos a indiferença e a burocracia do Pentágono, muros de vilania que só podem ser transpostos pela vontade individual e a iniciativa privada.
Ritchie faz bem em manter as coisas tensas. O cinema nem sempre é o melhor meio para mostrar desafios de resistência; a resistência é talvez a virtude mais difícil de dramatizar no grande ecrã. Embora a distância, as temperaturas e os desafios físicos enfrentados por Ahmed sejam impressionantes, é óbvio que tudo vai parecer muito mais dramático nos momentos em que ele encontra grupos de busca talibãs e o filme entra no modo “acção e espionagem”. Mas a violência aqui funciona como elogio de irredutíveis qualidades humanas e não como festival circense ou condenação pacifista de imediatismo infantil.
Nem todos os actores se sentem confortáveis num trabalho que exige que passem uma parte significativa do tempo narrativo semi-conscientes num carro de mão improvisado. E mesmo quando chega a altura de Kinley entrar em ação, grande parte dela envolve ficar incrivelmente irritado ao telefone, depois de ter sido colocado em espera durante horas por camadas impenetráveis e barrocas da burocracia americana, meio ensandecido de frustração.
Mas Jake Gyllenhaal é reconhecidamente um colarinho azul da sétima arte e se este não é o tipo de heroísmo que vai funcionar para a generalidade das estrelinhas de Hollywood, Gyllenhaal quase se especializou em interpretar um certo tipo de protagonistas que mantêm um estreito relacionamento com a ambiguidade da natureza humana: Anthony Swofford, o atirador que não dispara uma única vez a sua espingarda em “Jarhead”. Tommy, o tipo que quase tem um caso com a mulher do irmão, mas que depois não tem, em “Brothers”. O repórter sinistro de “Nightcrawler”. Essa energia é perfeita para a sobriedade de “The Covenant” – e dá espaço a Dar Salim para brilhar, num papel mais substancial do que a maioria dos seus trabalhos em Hollywood lhe proporcionaram até agora. Juntos, os actores constroem um retrato convincente de dois indivíduos unidos por um sentimento de tentar fazer a coisa certa num mundo onde esse curso de acção parece condenado à impossibilidade estatística. Às páginas tantas Kinley diz isto:
“Há um gancho em mim. Um que não se consegue ver, mas que está lá”.
Os gregos chamariam a esta sensação eudaimonia, estado de consciência que surge quando um “eu” mais elevado e autêntico, o daimon, está constantemente consciente da sua ligação íntima com outros seres humanos.
Apesar da impura aparelhagem que tem por trás (MGM, Amazon e etc,.), Guy Ritchie consegue, com esta fita de elevada potência emocional e crítica, sair da vulgaridade mainstream que nos é impingida por Hollywood de forma quase exclusiva, nos tempos que correm. E escarafunchar na consciência da inconsciente máquina de guerra americana.
Há quem diga que não se pode ensinar truques novos a um cão velho, mas no caso de Guy Ritchie a assumpção proverbial é capaz de não se aplicar. O cineasta britânico mostra em “The Covenant” que sabe reinventar-se e construir um poderoso drama de guerra.
E o que resta dizer, fica para ser dito pelo incontornável The Critical Drinker.
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