Caravaggio . Judite e Holofernes . 1598-1599

 

“Aqueles que entregam as suas liberdades essenciais em troca de uma breve sensação de segurança, não merecem nem a liberdade nem a segurança.”
Benjamin Franklin

 

“Se pensas que os homens fortes são perigosos, espera até veres aquilo que os homens fracos são capazes de fazer.”
Jordan B. Peterson

 

Nem imaginas a sorte que tens por teres nascido quando nasceste. Foste poupado a guerras de cem anos e a fomes generalizadas, pragas épicas (daquelas a sério, que levavam 30% das almas para o inferno), e vilanias e padecimentos de toda a ordem que tornavam a vida perigosa e bastante desagradável aos azarados que nasceram um século ou dois antes de ti, se, para efeitos retóricos, for necessário recuar assim tanto no tempo.

Ainda por cima, pariram-te em Portugal, praia ocidental solarenga e pacífica, onde não se exige grande coisa de ti para além do voto no partido socialista; território condescendente perante as tuas falhas de carácter, as tuas preocupações despreocupadas, as tuas preguiças de estimação, as tuas eruditas opiniões sobre ti próprio e os teus ignorantes conceitos sobre tudo o resto e as tuas iludidas certezas sobre o futuro e onde consegues ainda comer e beber como Pantagruel no paraíso.

E repara que basta alterar um dos factores que fazem brilhar a tua boa estrela para que as coisas se compliquem dramaticamente. Por exemplo, se tivesses nascido no mesmo dia e na mesma hora em que nasceste mas na Libéria em vez de Portugal, é garantido que os teus problemas existenciais, tanto como os teus nobres ideais humanistas, sofreriam muito provavelmente um radical desvio pragmático.

Na mesma linha de raciocínio, se tivesses persistido no luso berço, mas fosses aparecido no século XIX, o destino que te ia muito provavelmente calhar na lotaria ontológica seria o de escravo rural, analfabeto miserável e insignificante, servo da gleba pós-medievo num país muito marginal, muito pobre, muito ignorante e em constante guerra civil.

Como vês, até para ser um sapiens tão normalóide e insignificante e insubstancial como tu, é preciso ter nascido com o cu bem viradinho para a lua.

Felizmente para ti, não precisaste de morrer com as tripas de fora numa trincheira do inferno da Flandres de forma a garantir que os teus filhos e os teus netos permaneçam dentro do quadro material e cultural da civilização mais bem sucedida da história universal dos parcos e difíceis sucessos do homem. Mas se te borras todo por causa de uma gripe, que género de soldado achas que serias?

Felizmente para ti, não foi necessário matares ninguém para te libertares dos diversos jugos, das incontáveis vilanias, das indescritíveis injustiças que preenchem a tinta vermelha a cronologia hominídea. Mas para que te dês ao luxo do pacifismo, quantos milhões caíram pelo fio da espada?

Felizmente para ti, nunca serviste no Arquipélago Gulag. Nem nunca tiveste que escoltar os judeus ao duche. Não foste vítima nem carrasco, nem culpado nem inocente caíste no tenebroso palco de horrores com que os deuses se divertiram connosco, durante séculos e séculos sobre séculos. Não foste chacinado por tártaros, escravizado por cartagineses, espoliado por romanos ou pirateado por vikings. Não dependes de boas colheitas para atafulhar o frigorífico (quantos dos teus antepassados morreram de fome para que agora vivas tão preocupado com a tua dieta?,) e não se crucificam pessoas no mercado do teu bairro e a tua mulher não tem que andar na rua enfiada num saco negro e o teu marido não tem que manter um impossível harém de gajas que estão ali apenas para serem fornicadas (pesadelo sensual e logístico do caraças).

Felizmente para ti, não sujaste as mãos na lama da história. Mas podias ao menos aprender com ela. Podias ao menos mostrar algum respeito por aqueles que te deram o Direito, que te deram a liberdade e que criaram, com suor e sangue e lágrimas e sofrimentos que não sabes imaginar, as condições inauditas de prosperidade, segurança, conforto e acesso ao conhecimento que tu tens agora.

Mas a verdade é só uma: se não souberes valorizar as realizações dos teus pais, deves preparar-te para a ingratidão dos teus filhos.

E assim, iludida criatura, sempre que permitires que censurem aqueles que discordam de ti, ignorante de que também tu acabarás amordaçado, sempre que fragilizares, recusares e traíres a civilização em que foste criado, assegura-te que outra existe que te dê aquilo que estás a entregar desbaratadamente. Assegura-te que o sítio para onde te levam os teus queridos líderes, no grande salto progressista e ecológico e higienizado e equalizador e politicamente correcto que querem que tu dês, não é apenas e como quase sempre, mais um campo de concentração.