A história de Carroll Hall Shelby e Ken Miles e de como a Ford se tornou a primeira e até hoje única marca americana a ganhar as 24 Horas de Le Mans é, por si só, uma odisseia. E “Ford v Ferrari“, a fita de que mimetiza a história, capta a glória e a tragédia com o mesmo registo paradigmático de Hollywood: entre os factos e o choradinho.
Ainda assim, o trabalho de James Mangold documenta, a espaços com exuberante perícia técnica e disfarçando muitíssimo bem os recursos de construção digital a que teve necessariamente que recorrer, uma época lendária do automobilismo. Entre as rivalidades de duas indústrias familiares, mas assimétricas por definição (a Ford produzia dez vezes mais automóveis por dia que a Ferrari num ano), as vidas humanas que se colocavam neste jogo de alto risco, e a paixão incondicional pelos automóveis e pelas corridas e pela velocidade, o realizador encontra espaço para a sua fábula. “Ford Vs Ferrari” é amiúde lamechas, mas não deixa de ser épico. Recorre por diversas vezes a facilitismos de narrativa, mas permanece minimamente íntegro.
Ao contrário do que eles pensam, os americanos não sabem filmar corridas de automóveis europeias. Talvez porque as corridas de automóveis deles são diferentes das europeias, talvez por displicência, talvez porque dão prioridade a objectivos que nada têm ver com o realismo com que o assunto devia ser tratado. Em “Ford v Ferrari” há erros de edição brutais, facilitismos escusados, equívocos evidentes e um constrangedor desconhecimento do traçado de La Sartre e de como eram conduzidos os automóveis desta era. Mas por entre vários níveis de incompetência técnica, há também uma história que é essencialmente bem contada, apesar de, por ser rocambolesca e por ser submetida à vontade melodramática da produção, parecer até fictícia.
Este texto não tem spoilers pelo que não vamos prosseguir com a novela propriamente dita. Interessa antes evocar aquilo que o filme mais elogia: o engenho, a coragem e a determinação irredutível de uns quantos heróis que projectaram a Ford para lá do imaginário onde estava a apodrecer e construíram um automóvel icónico e fenomenal, que acabou por triunfar em 4 edições consecutivas de Le Mans, entre 1966 e 1969.
É no entanto justo dizer que, ao contrário do que os guionistas, na sua pobre lógica binária, não se cansam de nos tentar convencer, esses quantos heróis incluem também altos quadros da marca, que fizeram muita coisa acontecer, e não apenas Shelby, Miles e companhia, por muito que possamos venerar a memória do criador do Cobra e do indomável piloto anglo-americano.
Matt Damon e Christian Bale vão lindamente como a dupla de protagonistas e Tracy Letts parece muito confortável na pele do senhor Henry Ford II, embora seja obrigado a desnecessários exageros de temperamento.
A cinematografia é irrepreensível e o filme é muito bonito de se ver, até porque está focado em automóveis lindíssimos como os Cobra de Shelby, o Ford GT40 e aquele que será talvez o mais belo carro de corrida da história da indústria automóvel: o Ferrari 330 P3.
Convém chamar a atenção das audiências mais jovens que estes monstros V8 e V12 de 500 cavalos, que atingiam velocidades superiores a 300 Kms/h, não integravam qualquer dispositivo electrónico que pudesse assistir a hercúlea tarefa de sobreviver à sua indomesticável potência, e os cuidados relativos à integridade física dos pilotos resumiam-se ao cinto de segurança. Acresce que o circuito de Le Sarthe dos anos 60 era muito diferente do que é hoje. A recta de Hunaudières não tinha chicanes e oferecia a oportunidade para que as bestas desenvolvessem toda a brutalidade dos motores. O circuito, que ainda hoje é na sua maior parte roubado a estradas públicas, apresentava péssimas condições de piso, era em grande parte da sua extensão desprovido de rails de protecção e limitado por árvores. À noite e à chuva, o desafio das 24 horas de Le Mans nos anos 60 era uma espécie de suplício, um teste de resiliência e coragem acessível apenas a super-heróis.
O filme de Mangold faz alguma justiça a essas dificuldades épicas, bem como ao perigo extremo que a condução destes automóveis suicidários traduzia. Há até um breve segmento que documenta um acidente durante a corrida que é bastante realista e muitíssimo bem montado. O problema é que somos concomitantemente confrontados com outras sequências de corrida que são completamente desprovidas de rigor técnico, principalmente no que diz respeito a ultrapassagens (a produção não sabe como é que se ultrapassa em Le Mans e muito menos nesta era do automobilismo), paragens nas boxes, dobragem de carros de classes mais lentas e etc.
Em conclusão, Ford v. Ferrari, a acelerar agora no Canal Hollywwod, podia ser um filmaço de se lhe tirar o chapéu. Mas fica-se pela mediania porque não consegue escapar aos estereótipos e às deficiências culturais da indústria cinematográfica americana. Para quem tem o bichinho das corridas de automóveis será sempre, porém, um objecto fílmico incontornável.
Relacionados
18 Mar 25
“Severance”: televisão acima da média.
"Severance", que navega num imaginário de espaços liminares e ficção científica do género noir, é ainda assim um produto televisivo de carácter original e guião competente, que se sobrepõe claramente à média contemporânea, e cujo consumo o ContraCultura recomenda.
15 Mar 25
A Morte de Marat: Entre a dor e a propaganda.
Clássicos do Contra: Um revolucionário jaz morto na banheira. O retrato é uma obra de propaganda jacobina, emblemática da Revolução Francesa. Mas para além da manipulação, Jacques-Louis David também expressa a dor de quem perde um amigo.
15 Fev 25
Paixão, angústia e êxtase: O “Adagietto” de Gustav Mahler.
O quarto andamento da Quinta Sinfonia de Mahler é uma joia do romantismo tardio, que resultou em duas histórias de amor: a do compositor e de Alma e a de gerações de melómanos que se apaixonaram por esta obra-prima de contenção e vontade de infinito.
14 Fev 25
Disney suspende programas DEI devido à pressão dos accionistas.
A Walt Disney Company parece estar prestes a ser a última grande empresa a interromper as suas iniciativas de diversidade, equidade e inclusão, devido à pressão dos investidores. Mas é duvidoso que os conteúdos fílmicos e televisivos sigam para já a mesma tendência.
10 Fev 25
Teatro francês à beira da falência depois de acolher centenas de ilegais que se recusam a sair.
Um teatro francês de militância esquerdista está à beira da falência depois de ter aberto as suas portas a cerca de 250 imigrantes africanos que se recusaram a abandonar o local depois de lá terem permanecido durante cinco semanas.
3 Fev 25
Quadro comprado por 50 dólares numa venda de garagem é um Van Gogh que vale 15 milhões.
Uma pintura descoberta numa venda de garagem em 2016, e adquirida por 50 dólares, será uma obra autêntica do mestre holandês Vincent van Gogh, que vale cerca de 15 milhões, com base num exaustivo relatório forense.