Yayoi Kusama enquadrada num dos seus trabalhos. 2019

 

Num ensaio publicado no Journal of Art History em 2010, Terry Smith, o pseudónimo de Andrew W. Mellon, Professor de Teoria e História da Arte Contemporânea na Universidade de Pittsburgh, tenta articular uma definição para a sua área de especialização. Falha redondamente, claro, porque a amalgama de equívocos pós-modernistas que serve de base teórica à galeria de horrores da arte no século XXI é impossível de definir.

Logo no princípio do texto, encontramos esta frase completamente descabida:

“Artists have inherited from the twentieth century certain inescapable topics: especially, the effects  of  trauma  and  the  possibility  of  liberation.”

Não, não foi isso que os artistas do século XXI herdaram do século XX. O que herdaram do Século XX foi conforto material, super-protecção contra os rigores da existência, liberdade para cumprirem o seu destino, um mercado liberal que promovia a livre circulação de ideias e a mais extensiva, abrangente e eficaz plataforma de publicação alguma vez inventada, a World Wide Web. Os artistas do século XXI são bisnetos e trinetos das pessoas que realmente sofreram os horrores da guerra. Não herdaram traumas nenhuns. São meninos mimados, confortavelmente instalados nos luxos do século XXI, formatados em universidades caríssimas e muito pouco exigentes por conceitos pós-modernos e marxistas que os convenceram que a arte é uma espécie de desconstrução do belo por via do activismo político e da equalização social. E se a um jovem se ensina que o mérito individual não tem qualquer valor (é até uma perversão), que espécie de produto vai ele criar quando for grande?

Também não herdaram nada que se pareça com a possibilidade da libertação, porque já nasceram livres. E pelo contrário, parecem até inclinados para rejeitar essa liberdade em que foram criados, como se tornou evidente durante a pandemia, em que não houve da parte dos artistas (e aqui estamos a falar das artes plásticas, mas podíamos incluir todas as artes, na verdade) qualquer volição libertária perante o fascismo “científico” dos regimes. As preocupações actuais da comunidade artística não têm nada que ver com liberdade. Têm que ver com a convergência ideológica e o uníssono conformista que os poderes instituídos exigem e dos quais os artistas dependem louca e avidamente.

Os grandes génios da comunicação visual na história da humanidade, esses sim, tiveram que lidar directamente com os efeitos do trauma e a possibilidade da libertação. Pagaram caro tanto uma coisa como outra. De Caravaggio a Van Gogh, passaram fome, sobreviveram a guerras, foram assassinados, eram patrocinados por assassinos, assassinavam eles próprios, enlouqueceram ou foram enlouquecidos, pintaram entre pestes e guerras de cem anos, foram rejeitados e humilhados e castigados por sociedades draconianas que amarfanhavam completamente o livre arbítrio e a possibilidade remota de uma vida próspera e realizada. Aprendiam o seu ofício enquanto recolhiam os penicos dos mestres (ou eram sodomizados por eles), passavam cinco anos, dez anos, vinte anos, à volta da mesma obra, na fantasmática perseguição da perfeição. Fugiam e eram perseguidos como criminosos, faziam do sofrimento, glória e usavam a arte como bandeira de valores estéticos e éticos, pontes universais de congregação da humanidade, e raramente, antes do século XX, como activismo politiqueiro.

Mais à frente no ensaio de Smith, podemos ler que:

“The main reason that exhibitions of contemporary art keep on being popular is, I suggest, because they are answering public needs.”

Perdão? Nem pouco mais ou menos. O autor aqui confunde turismo com êxtase, escândalo com consolação, heresia com arte e popularidade com marketing. Um dos exemplos que fornece como ilustração dessa fictícia aceitação pública da arte contemporânea é o da famosa, ou infame, exposição que exibiu o execrável “Piss Christ”, uma fotografia de um crucifixo imerso numa vitrine em vidro que foi previamente cheia com a urina do infeliz fotógrafo, Andres Serrano. Mas as multidões perante as quais esta obscenidade foi exibida estavam lá para experimentar o belo e a consolação? É claro que não. As pessoas não vão às exposições e aos museus de arte contemporânea para testemunhar a glória material de trabalhos transcendentes e de transporte para a eternidade, porque estes já há muito que deixaram de ser feitos. Vão, muitas vezes, como no caso dos Guggenheim, como quem visita ex-libris. Vão, muitas vezes, para serem insultadas, porque da mesma forma que os artistas foram convencidos de que são uma espécie de che guevaras da palete cromática, o público foi convencido que as artes plásticas existem para o reduzir à sua insignificância. A arte contemporânea, para ser entendida pelas massas, tem que trazer agarrada um manual de normas que a explique. É como dizia Maxfield Parrish:

“O modernismo abstraccionista consiste em 75% de explicação e 25% de só Deus sabe o quê!”.

Mas ninguém precisa de uma memória descritiva para perceber o Cristo de Velázquez. A comunicação entre o artista e o público foi, talvez com a excepção de alguma pop art, conceptualmente interrompida desde os anos 50 de século XX. Por outro lado, o laço entre o capitalista e o artista nunca foi tão estreito (Terry Smith parece ter percebido os perigos dessa relação degradante, mas dela tira conclusões inócuas ou erradas). Os orçamentos de marketing brutais arrastam de facto multidões para a celebração do vazio. Mas na verdade tudo o que isso prova é o estado apocalíptico da condição psicossocial do Ocidente e o cancro terminal que corroí o seu património cultural.

A tentativa de categorizar e separar modernismos, pós-modernismos e “artes do agora” que Terry Smith ensaia, é também de utilidade muito limitada. Quando se fala de pós-modernismo em filosofia de arte, fala-se geralmente da condução das artes ao ponto zero do virtuosismo técnico e do fôlego criativo através do relativismo moral e e do niilismo estético; fala-se da redução do objecto visual a um subproduto gratuito de modas e convenções efémeras; fala-se da degradante ideia de validação pelo método, da espúria justificação conceptual, que se refugia na taxonomia e na etiqueta para poder ser irresponsável perante o seu legado. Toda a arte contemporânea é, filosoficamente, pós-moderna. E assim sendo, volátil, vulgar, complacente e, em última análise, irrelevante. Quem é que acredita que daqui a 500 anos alguém vai venerar os grandes mestres da instalação do início do Século XXI? A arte efémera não é arte. É publicismo. Terry Smith até descansa o meu argumento, curiosamente:

“Yet living with the temporary, whatever it happens to be but above all because it has the excitement of suddenness and transitoriness,  is  precisely what fashion, and the most fashionable art, prizes above all.”

Para além de todos os equívocos woke próprios do intelectual do século XXI, que escreve ainda por cima com o intuito de definir a arte contemporânea (a interseccionalidade, a multiculturalidade, as produções “híbridas”, a influência dos movimentos LGBTQ e BLM e o diabo a sete), a ideia central de Terry Smith, de que a arte é produto de contexto e contingência, anula fundamentalmente a possibilidade de transcendência. E, mais uma vez: a arte que não funcione como elevador do espírito, não é arte. É comércio. Podemos até ensaiar o atrevimento de especular se não será precisamente essa capacidade de escapar ao contexto e à contingência que define o objecto artístico. E assim sendo, o professor de Pittsburgh define precisamente aquilo que a arte não é. Ou não deveria ser.

Em jeito de conclusão, o ensaio arrisca uma hipótese que tem tanto de tímido como de insubstancial:

“So, if I were pressed to match the question ‘What is contemporary art?’ with a shorthand response, it would be that it is that art marked by art to come, that is, by contemporaneity as I have  (re)defined it. A  slightly longer way of putting this would be to say that contemporary art today is that art driven by the multiple energies of contemporaneity, the art that figures forth those energies  so we can  glimpse them in operation, the art that works to transform those energies in ways that keep our  futures open, an art that draws us into commitment to what is to come.”

Este parágrafo é tão eloquente sobre o labirinto de ratoeiras em que o autor se enfia que quase nem merece comentários. Para além da redundância escandalosa  (“contemporary art today is that art driven by the multiple energies of contemporaneity”), que sumo significante podemos tirar daqui? Que a arte de agora, para Terry Smith, é a arte do porvir. Como este texto tenta demonstrar, o carácter efémero e trendy da criação artística actual dificilmente sobreviverá para além do momento em que é exposta, quanto mais aspirar à permanência sobre o porvir. Para além de não fazer sentido nenhum, a afirmação, que conduz ao abstracto e ao intangível e aos amanhãs que cantam e ao imaginário distópico prototípico da cartilha progressista, pretende convencer-nos que os desvios, os fracassos, os desastres, as banalidades e os horrores contemporâneos servem um futuro risonho de actividade artística multicultural, equalizada, politicamente correcta, homossexualizada, globalizada e feliz, como um sonho de Klaus Schwab.

E assim, tão desligada da realidade e das “necessidades públicas” que as massas proletárias a confundem com lixo.