Agora estás no átrio do pretório. À tua frente, a multidão, liderada pelos sacerdotes-vampiros, clama por sangue. A teu lado, dois homens acorrentados: Jesus e Barrabás. Sabes o que tens que fazer. Já mandaste dizimar. Já poupaste criminosos. Já crucificaste inocentes. Já manipulaste a vontade das turbas por vezes incontáveis. Procuras aplacar nervos e remorsos. O nazareno foi brutalizado muito para lá do que seria necessário à tua intenção retórica. A coroa de espinhos, cravada profundamente no crânio, não deixa de ter o seu valor dramático, mas, se não tivesses outras preocupações, estarias agora a castigar a crueldade da soldadesca. A violência redunda em violência e tu, neste preciso momento, ainda não sabes escapar desse círculo.

Levantas os braços para aplacar a fúria cega dos judeus. E como aprendeste no fórum de Roma, há uma eternidade atrás, completas o movimento circular na direcção do coroado.

– Eis o homem!

A turba eleva-se de novo numa onda de fúrias.

– Trouxestes ao critério de Roma este homem, acusado de usurpação, blasfémia, motim e impedimento ao tributo imperial. De blasfémia não faz Roma juízo, de motins não tem a guarda relato e aos cofres do pretório não chegou registo de prejuízos. Perguntado se era Rei dos Judeus, o acusado nada disse que confirme as piores suspeitas e até Herodes, a quem foi enviado, o devolveu sem condenação nem castigo. Nada encontramos nele que mereça mais penas do que o suplício a que já foi submetido pela guarda imperial.

A multidão inflama-se de protestos e exigências. Os gritos ofendem o oxigénio escasso, o ódio escalda-te a pele como o vento do deserto. Insistes. Elevas de novo os braços juntos e deixas cai-los depois na chaga viva que é o corpo do inocente. Agarras os seus braços que são fontes de seiva púrpura. Procuras o timbre de voz que melhor serve o tribuno.

– Roma não encontra razões para condenar este galileu à cruz. Fostes vós quem o submeteu à justiça imperial. Aceitai agora o seu mandato.

A corja infecta amotina-se e os legionários da guarda recuam até se encostarem à varanda do púlpito. És capaz de saborear a saliva dos impropérios. És capaz de cheirar a putrefacção dos sacerdotes. Estás no limite da ofensiva. Usas a tua última centúria:

– Ainda assim, Roma é magnânima com a vontade popular. Como é costume nesta data, proponho libertar um destes acusados e crucificar o outro. Ofereço ao vosso juízo um homem que o arbítrio dos césares considera inocente, mas que para aplacar a vossa ira foi supliciado sem piedade e um outro, assassino condenado, insurrecto, malfeitor e violador de todas as leis e códigos morais, Barrabás. Que o povo de Jerusalém faça justiça.

A multidão rompe a falange da guarda e galga pela varanda enquanto grita em uníssono clamor:

– Crucifica-o! Crucifica o blasfemo! Crucifica o nazareno! Liberta Barrabás!

O teu instinto de legionário não precisa de redundâncias. Sabes que a batalha está perdida. Inapelavelmente. Resta bater em retirada. Baixas a cabeça e tens as mãos ensanguentadas. Recuas, a pretexto do lavatório que está a uns metros distanciado do avanço da turba. Lavas as mãos e proferes a sentença.

– Que Barrabás seja libertado e que levem o nazareno à cruz, onde será suspenso até morrer. E que se grave nessa cruz “Este é Jesus, o Rei dos Judeus”. E que se dê testemunho nos actos de que Roma é inocente deste sangue.

Enquanto a populaça perde o ímpeto, no orgasmo da sua vontade de morte, Cáifas protesta ainda.

– Governador, este impostor não é rei dos Judeus. Não está acima de Herodes, rei verdadeiro por decreto de Roma, nem de César, imperador a que nos submetemos de livre vontade. Não podes gravar semelhante falsidade na cruz deste apóstata!

Mas tu sabes, tu sabes muito bem, que mesmo na derrota tens margem para a dignidade. E poder para um último arremesso.

– A sentença que proferi será cumprida como a proferi.

Viras as costas sem mostrar o peso que elas carregam. Interrompe-te a fuga, à entrada do pretório, o olhar compulsivo, desesperado, alienado da tua mulher.

– Quando Jesus for levado a seu túmulo, coloca lá dois guardas de vigília. Na madrugada do terceiro dia, convoca-os de regresso à caserna. Faz isto pela vida de teu filho, já que de superior desígnio não foste capaz.

 

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Chove copiosamente há três dias. Nunca tinhas vista nada assim em Jerusalém. A chuva purifica o ar. A derrota pacificou-te. Já não te arde a pele, já não se desfaz o cérebro em padecimentos. Estás, sereno, há espera que algo aconteça. Um desenlace. Todas as histórias têm um desenlace e tu sabes que foste parte de uma história que vai correr mundo, que vai construir civilização sobre o teu império moribundo.

– Senhor.
– Que me queres, Licínio?
– Chegou um questor de Roma. Quinto Cúrio. Traz a notícia de que Morreu Tibério.

– És chamado à capital. Terás que jurar a Calígula, que foi feito César.
– Calígula?
– Calígula, filho de Germânico e de Agripina.
– Germânico, que Tibério mandou matar.
– Sim, senhor.
– E que vai fazer Calígula com o plebeu que combateu nas legiões de Tibério e que por nomeação de Tibério, assassino de seu pai, é governador do cú do mundo?

– Licínio.
– Senhor.
– Leva a tua família, os teus escravos e o ouro que roubaste aos cofres do pretório e desanda daqui. Dá-te ao mundo. Vive e prospera.

Sais do pretório pelo pórtico dos criados. Caminhas em direcção ao túmulo. À porta, a lápide deslocada e a ausência da guarda que para lá destacaste e que de lá desertou há hora marcada, conforme tuas ordens. Lá dentro, nada senão um sudário manchado com o sangue do homem que condenaste ao pior suplício do império. Guardas o sudário e sais. Caminhas na direcção de Golgotá. Procuras pela cruz abandonada do Reis dos Judeus. Ajoelhas-te sob esse marco eterno. Pedes perdão de tudo. Rezas pelo teu filho. Juras fidelidade. Deixas na trave ainda ensanguentada o sudário, como bandeira do teu remorso. Regressas ao pretório. Recebe-te a tua mulher. Ela sorri como há anos não a vias sorrir.

– O menino vive. Viverá. Deus seja abençoado.

Abraças a criatura com uma ternura que desconhecias em ti. Corres para o quarto do teu filho e ris e choras e sabes que testemunhaste a presença na Terra do deus único, magnificente e misericordioso, e que foste abençoado pelo seu filho, que levaste à cruz para tua redenção e redenção da humanidade. Sabes, sem saber porque sabes, que já não és Pilatos, governador da Judeia, que serás Gaio de Corinto, e que nessa cidade encontrarás a paz e seguirás os ensinamentos de Cristo até ao fim dos teus dias.

Sabes, sem saber como sabes, que vais ser baptizado por um tal Saulo de Tarso, que na estrada de Damasco será Paulo.