Estás inerte, na contemplação do teu filho moribundo. A tua mulher interrompe o silêncio com voz de oráculo.
– Que fizeste com o homem que os sacerdotes querem matar?
– Que tens com isso, mulher? Atreves-te aos assuntos do governo?
– Esse homem é um curandeiro famoso. Ocorreu-te isso, insensato? Pensaste no teu filho enquanto fazias política?
Por momentos julgaste que o teu dia tinha melhorado. Mas não há dias bons em Jerusalém. Enfias-te no teu tablinum, onde ficas a sós com os manuscritos e as memórias e os arrependimentos. O rosto do Judeu permanece-te na retina. Os olhos abismos do condenado habitam-te agora o cérebro, em substituição da enxaqueca. Procuras revisitar a claridade desse momento, mas as trevas do estúdio, as sombras da existência, já devoraram a luz.
Entra Licínio.
– Senhor.
– Pelos relâmpagos de Júpiter, que me queres tu cavalgadura?
– Os sacerdotes estão de volta.
– Não, não e não.
– O Rei Herodes nada decidiu sobre o rei dos judeus.
– O Rei dos judeus? O rei dos judeus é Herodes. E o rei dos imbecis também. Que erro cometi contra Ceres para que me castigue com este inferno?
– Senhor.
– Diz, homem.
– Suspeito que queiras poupar o Nazareno.
– Digamos que prefiro passar o resto deste dia sem pendurar pessoas na cruz. Neste fim do mundo a madeira não abunda e gostava de aproveitar a que temos para outros préstimos.
– Como é costume na Páscoa, podemos oferecer Barrabás, o assassino, à sede de sangue da turba e libertar o galileu.
– Para alguma coisa serves, raposa. Como se chama o infeliz?
– Jesus, senhor.
– Trá-lo à minha presença.
Não tens que perder o teu tempo com judeus destituídos. Não tens que dirigir a palavra a falsos profetas, baixos agentes da superstição humana, impostores. Não tens que te apiedar. Não tens que interceder na justiça dos bárbaros. Mais crucificado, menos crucificado, que diferença faz ao grande caos da providência? Mas aqueles olhos abismos olham-te para o fundo da alma. Perscrutam os teus erros. As tuas falências. A tua dor. E lá muito nos limites da consciência, desponta uma esperança discreta, secreta, que fala com a voz da tua mulher.
Licínio traz o nazareno agarrado por uma corda ao pescoço.
– Que me dizes, jumento, sobre as acusações que aqui te trazem?
–
– Fala, imbecil, não vês que o teu silêncio te condena? És rei dos judeus? Consideras-te soberano sobre Herodes, imperador acima de César? Vandalizaste o templo? Impediste aos cofres de Roma o trânsito de suas justas receitas?
–
– Se nada dizes, impostor, subirás à cruz.
– Subirei à cruz e não por tua vontade. Eu nasci para a cruz porque a cruz é o destino daquele que testemunha a verdade.
– Ah, a verdade e o que é isso da verdade?
– O teu filho, de quem te envergonhas e que morre nos braços da tua mulher inconsolável, é a verdade. A tua infâmia de centurião indigno do sacrifício dos teus homens é a verdade. Os inimigos que chacinaste no campo das batalhas fúteis que travaste em nome da tua ambição. Os inocentes que condenaste à morte. Os culpados que mandaste crucificar. Os miseráveis que espoliaste. A escrava que mataste porque podias, que mataste para conhecer intimamente a morte; as dívidas que deixaste em Roma, o imperador que temes como se de Deus se tratasse, é a verdade. A tua ignorância de Deus e a tua arrogância sobre o seu filho unigénito é a verdade. A tua maldição de pagão, a tua existência perdida entre divindades imaginadas que roubaste a gregos e a troianos, é a verdade. O meu reino, o dos céus, o que transcende Herodes e Tibério, Homero e Virgílio, e que partilho com meu pai é a verdade. O amor entre os homens na certeza de uma vida depois desta vida, é a verdade. Que vou ser condenado pelo meu próprio povo, é a verdade. Que isso é necessário para a redenção da humanidade, é a verdade. Que perecerei nesse suplício e que ressuscitarei passados três dias e que ascenderei à morada ultima de todos os que aceitam a verdade, é a verdade.
Agora já não és Pilatos, governador da Judeia. És apenas um homem perante o mistério. E de novo levanta a cabeça, o acusado. E de novo o seu olhar sem fim te violenta as defesas e os argumentos que construiste para a tua sobrevivência moral. Agora sabes que não queres matar este homem. Agora sabes que não vais impedir o seu sacrifício. Mas sobrevive em ti a fortaleza da tentação. A luz negra da esperança.
– E se te salvar, concedes-me a vida de meu filho?
– O teu filho viverá. Mas não te cabe a ti salvar quem está destinado à eternidade por uma força maior.
– A ver vamos. Licínio!
– Senhor.
– Manda supliciar este homem. Mas diz à guarda que refreie o entusiasmo. Quero ver sangue, mas quero-o vivo e capaz de andar pelo seu pé.
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