Lamentavelmente, quando um movimento revolucionário se torna fraco e imoral e colapsa no que antes via como algo a ser combatido, raramente ouvimos qualquer relato sobre o que se perdeu.
Vilhelm Bjerke Petersen
Esta é a história de duas exposições surrealistas, levadas aos olhos do público no mesmo museu, o Den Frie, em Copenhaga. Entre elas, 90 anos de declínio.
Em 1935 Vilhelm Bjerke-Petersen (1909-1957), pintor, escritor e crítico de arte dinamarquês decidiu apresentar o movimento surrealista aos seus compatriotas. Fê-lo no Den Frie, na altura como hoje um museu de arte contemporânea, onde, sobre a nomenclatura “International Kunstudstilling Kubisme = Surrealisme” (Exposição de Arte Internacional Cubismo = Surrealismo) apresentou obras de Jean Arp, René Magritte, Salvador Dalí, Max Ernst, Alberto Giacometti, Man Ray, Joan Miró, Yves Tangu e Paul Klee.
O impacto da exposição transcendeu as fronteiras da Dinamarca, na medida em que reunia os artistas mais icónicos do movimento e recolhia até a colaboração conceptual de André Breton, que era considerado o “pai” do surrealismo. No texto introdutório do catálogo Bjerke-Petersen informa que esta foi a primeira exposição surrealista internacional na Escandinávia, demonstrando que na década de 1930 o Den Frie já era palco para alguns dos eventos mais importantes da cena artística da época.
O Surrealismo como revolução onírica.
Produto da revolução modernista que tinha assolado a Europa no dealbar do século XX, e parente directo das suas ramificação futuristas, o surrealismo nasce formalmente em 1924, quando André Breton lançou seu manifesto. Mas já em 1920, em colaboração com o ativista e poeta Phillipe Soupault (1897-1990), Breton tinha desenvolvido a ideia da escrita automática; uma técnica que viria a ser um dos princípios fundamentais do movimento surrealista. No seu manifesto, Breton apresentou uma definição muito clara do Surrealismo, que ele descreveu como:
“Automatismo psíquico no seu estado puro, pelo qual se propõe expressar – verbalmente, por meio da palavra escrita, ou de qualquer outra forma – o funcionamento efectivo do pensamento. Ditado pelo pensamento, na ausência de qualquer controle exercido pela razão, isento de qualquer preocupação estética ou moral”.
Os primeiros surrealistas procuravam, com base nas teorias do inconsciente apresentadas pela psicanálise, criar uma linguagem inteiramente nova e uma ontologia totalmente livre e irrestrita, como parte de um processo mais amplo de revolução e convulsão social. Mais tarde, pintores como André Masson e Max Ernst desenvolveram técnicas para adaptar a ideia de automatismo a um programa de artes visuais, em que os mundos interiores dos sonhos e do subconsciente interagiam com a ordem racional do mundo externo, transcendendo-a para aceder a uma espécie de “super-realidade” sensorial.
Bjerke Petersen levou a sério esta maneira de pensar quando, num pequeno livro que publicou sobre seus próprios desenhos, “Mindernes Virksomhed” (As Actividades da Memória), de 1935, proclamou:
‘Este jovem [Bjerke Petersen] experimentou o que está prestes a ser revelado nas páginas que se seguem. Surgiu-lhe como parte da realidade e parte dos sonhos. No decurso do tempo, fundiram-se numa série de imagens acompanhadas por algumas poucas palavras fragmentadas”.
A missão dos surrealistas não se preocupava apenas com a criação de uma nova imagética. Pelo contrário, tratava-se de redireccionar a realidade física e social, impulsionada por ideias de função e utilidade, para um novo tipo de liberdade, incorruptível por toda e qualquer doutrina da moral capitalista, imperialista e burguesa. Na segunda edição da revista Konkretion, também dirigida por Petersen, Wilhelm Freddie – expressando opiniões inteiramente alinhadas com as de Breton, Soupault e muitos outros surrealistas – defendeu a experiência dos impulsos subconscientes sobre a realidade externa, racional e restritiva, percebida pelos sentidos. Bjerke-Petersen e Freddie estavam entre os poucos artistas na Dinamarca que compartilhavam a ideia de que sonhos subjetivos, impulsos sexuais, instintos animais descontrolados e sistemas filosóficos anárquicos deveriam servir de base para a construção da sociedade ideal e da arte universal e verdadeira. Nesse sentido, os surrealistas tomaram um ponto de partida radical, que envolvia revoluções políticas. Como tal, um dos principais desafios era a questão de como manter o ímpeto revolucionário do Surrealismo. Para Bjerke-Petersen, a questão principal era não deixar que o movimento fosse explorado, amputado, entregue ou absorvido pela sociedade burguesa.
Embora o surrealismo se tenha tornado, mais tarde, um movimento contra-revolucionário, à medida que foi gradualmente reduzido a fetiche pelo mercado internacional de arte, isso não altera o facto de que foi originalmente desenvolvido com o desejo de derrubar e reorganizar o valores da sociedade burguesa estabelecida. Como muitos dos outros movimentos de vanguarda que surgiram em ritmo acelerado no início do século XX, o surrealismo foi um movimento construído sobre ideias de utopia, revolução e libertação das massas, que geraram grande impacto artístico e cultural em muitos países europeus, bem como nos Estados Unidos, logo no início da década de 30.
A exposição no Den Frei era assim o culminar, na Dinamarca, dessa vontade disruptora.
O Surrealismo como elogio da banalidade.
87 anos depois, a Den Frei volta a organizar uma exposição surrealista, sob o título “Another Surrealism”. No seu catálogo pudemos ler que:
“Nos últimos anos, novas e notáveis correntes surrealistas permearam a arte contemporânea. Onde a alegação do surrealismo histórico era deixar o inconsciente transbordar para a sociedade e assim derrubá-la, a colonização da mente no capitalismo tardio criou visuais surrealistas semelhantes, funcionando ao contrário.
A exposição Another Surrealism traça linhas entre o surrealismo histórico e a arte contemporânea. A potente conexão entre os dois momentos surrealistas separados e distintos é explorada através de quadros imersivos que reúnem obras de arte históricas e contemporâneas com tendências surrealistas marcantes. A exposição apresenta obras surrealistas que foram em grande parte escritas fora da história da arte – cenografias de exposições, obras de moda, instalações de vitrines e obras imateriais, como cheiro e som. A exposição apresenta obras de importantes artistas contemporâneos internacionais lado a lado com surrealistas históricos.”
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Mas o que observamos nesta exposição não é mais que um exercício sobre a banalidade, a vitimização e a mediocridade de recursos técnicos e artísticos dos artistas representados. A comparação entre o objecto artístico do ontem e do hoje, tentada desde o início deste texto e promovida pela exposição, que confronta os mestres do século XX com artistas contemporâneos como Magnus Andersen, Harry Carlsson, Sylvie Fleury, Lizzie Fitch, Ryan Trecartin, Sako Kojima, Nina Beier, John Miller, Aske Olsen, Mira Winding e Bunny Rogers, é sobre esse inclinado declínio de 90 anos, eloquente. E se o virtuosismo dos primeiros surrealistas permitia e alimentava as suas ambições revolucionárias, que expectativas podem ter os últimos sobre a sua capacidade de fazer diferenças, projectar mudanças ou alterar destinos?
É verdade que o paralelismo entre épocas distintas é não contextual e pode ter implicações perversas no entendimento da arte, da sua filosofia e da sua história. Mas essa verdade é válida quando, por simples entretenimento da sensibilidade, colocamos face a face Caravaggio e Picasso, Botticceli e Renoir, van Eyck e Hopper. Neste caso dos dois surrealismos, porém, não há que ter escrúpulos resultantes da anacronia: de um lado estão mestres que inovaram, deslumbraram, romperam com limites epistemológicos para abrir novos caminhos conceptuais, estabelecendo um prolixo legado de inquietude e criatividade. Do outro estão aprendizes do pastiche, caricaturistas, agentes provocadores, inábeis desenhadores de gatafunhos, experimentalistas do mau gosto e exploradores da fealdade. Não há vestígio de mestria, nestes trabalhos. E não há neles absolutamente nada de transcendente que inspire ou eleve o espírito do observador. Tratam-se de objectos despidos de virtude estética e ética.
A arte do século XXI é modesta em termos criativos tanto como aspiracionais. Não traz nada de novo, não inspira, não cria rupturas nem promove revoluções. Limita-se a uma actividade espúria, como uma linguagem montada à volta da sintaxe mas que é vazia de semântica.
Os dois surrealismos do Den Frie fundem-se assim num único realismo: o que retrata o deplorável estado da arte no século XXI.
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