“Ferrari – Race to Immortality”, que está a passar na HBO, é um documentário de Daryl Goodrich que se recomenda vivamente a todos os apaixonados do automobilismo, mas também para quem tem gosto por projectos cinemáticos de características revivalistas, porque no que respeita ao restauro de imagens fílmicas com mais de meio século de vida, é difícil registar um trabalho que fique perto sequer deste patamar de qualidade. É aliás a primeira impressão que assalta o espectador: a de estar a ver imagens dos anos 50 como se tivessem sido captadas aqui há uns anos poucos.

Mais a mais, a realização não nos poupa aos detalhes gráficos de uma modalidade que era, na época, uma indústria de matar pessoas: pilotos, espectadores e mecânicos morreram às centenas nos circuitos improvisados e infernais, com critérios de segurança da idade da pedra, que serviam de palco insano para as corridas, e esta produção da Universal Pictures não esconde nada, nem os pilotos a serem projectados pelos ares ou amassados contra o asfalto ou assados dentro dos carros, nem os muitos cadáveres que resultavam dos despistes e das colisões. Nesse aspecto, trata-se de um produto anacrónico, porque não é dos tempos que correm esta honestidade sanguinolenta.

 

 

Muito para além do seu âmbito, as imagens dão que pensar: aqui há apenas setenta anos atrás, a vida humana tinha um valor muito diferente. E a segurança era completamente preterida em relação a uma quantidade de outros factores como a glória, o patriotismo, a adrenalina, o heroísmo, a fibra dos homens e a sua vontade de superação e transcendência.

 

 

O documentário conta muito bem contada e com testemunhos da época, inclusivamente o de Enzo Ferrari, a história trágica de cinco pilotos que o lendário fundador da marca do cavalinho rampante contratou para cumprir a sua obsessão pelas vitórias, sendo que 4 deles morreram em competição, entre 1955 e 1958. O que sobreviveu, Mike Hawthorn, pereceu em 59, logo depois de ter abandonado as corridas, num desastre de viação.

 

 

Muitos clamam que esta foi a idade de ouro das corridas de automóveis. O ponto de vista é discutível, mas uma coisa deve ser dita: os pilotos desta geração eram constituídos por um material que foi entretanto descontinuado e qualquer comparação com os seus homólogos da actualidade é disparatada, no mínimo.

 

 

A coragem, a perícia, a versatilidade e o cavalheirismo destes homens com H enorme atingiam constantemente níveis superlativos, entre o épico e o anedótico. Mike Hawthorn usava laço na sua indumentária de competição e festejava da mesma efusiva forma as suas vitórias e as vitórias do seu amigo e compatriota Peter Collins. Este, por seu turno, ofereceu literalmente um título do mundial de pilotos a Juan Manuel Fangio. Luigi Musso passava as madrugadas imediatamente anteriores às corridas no Mónaco a perder fortunas nos casinos locais. Alfonso De Portago bebia álcool antes, durante e depois das corridas. Eugenio Castellotti passeava-se pelas boxes com fatos de alta costura.

 

 

Em certo sentido, estes ases eram completamente amadores. Mas no que diz respeito à forma como lidavam com o risco e com as bestas inguiáveis que lhes colocavam nas mãos, não podiam ser mais profissionais. Sob a batura exigente, niilista e quase desumana de Enzo Ferrari, que incentivava a rivalidade entre os seus pilotos para que estes assumissem ainda mais riscos, corriam e venciam em Fórmula 1, nos protótipos de Le Mans, em campeonatos de Turismos de toda a espécie e nas demais categorias que o patrão decidisse que eles tinham que correr. Eram pilotos para toda a obra. E em cada obra, a morte espreitava.

 

 

E é por isso que o único reparo que se pode fazer a este fabuloso e inesperado monumento documental é o seu título. Estes cinco lendários pilotos de Enzo Ferrari não correram para a imortalidade, pelo contrário: morreram cedo e já poucos se lembram das suas glórias.

O que é uma pena, principalmente num mundo como o contemporâneo, em que os heróis escasseiam e a coragem é um mito que já nem Hollywood ousa celebrar.