Há sem dúvida boas razões para pensar que os povos ocidentais obedeceram cegamente às restrições, confinamentos, mandatos e pressões sociais que os governos e os media lhes impuseram a propósito da pandemia. O caso Chinês, porém, faz questionar a linearidade dessa versão dos acontecimentos. A obediência não foi, deste lado do hemisfério, assim tão cega como isso, caso contrário estaríamos agora a viver situações de pura distopia como aquelas que, de forma a impor uma política de “Zero Covid”, continuam a registar-se na República Popular da China.

A crescente oposição no Ocidente a restrições sem sentido, à obrigatoriedade da vacinação e ao rastreio por passaporte tornou impossível a aplicação dessas medidas pelos governos. Nos Estados Unidos, a tentativa de Joe Biden de introduzir regras federais de passaportes de vacinação para empresas falhou miseravelmente, os estados republicanos desafiaram os lockdowns poucos meses após o início da pandemia e os estados que mantiveram as restrições apresentaram taxas de infecção mais elevadas, enquanto as suas economias se afundavam. Quando se tornou claro para o establishment que milhões de americanos não iriam cumprir certas directivas mais draconianas, as “autoridades” tiveram de recuar.

Mesmo os governos estaduais e as municípios democratas foram forçados a reconhecer que a farsa tinha acabado; o condado de Los Angeles tentou reintroduzir recentemente os mandatos de máscara e a iniciativa desmoronou-se, uma vez que muitos municípios afirmaram peremptoriamente que tencionavam ignorar novas restrições. A taxa média de mortalidade da Covid na América, de 0,23% (número oficial muito inflaccionado pela forma como os óbitos de pessoas com Covid foram somadas às mortes por Covid), não constituiu uma ameaça suficiente para convencer o público a abandonar os seus direitos constitucionais.

Na Europa assistiu-se também a um movimento de fundo contra a filosofia totalitária dos estados na prevenção da pandemia, que foi ganhando dimensão e influência à medida que informação independente sobre o vírus e as vacinas foi chegando ao público.

Sem os milhões de pessoas corajosas que se recusaram a cumprir as normas absurdas e ineficazes decretadas pelos governos, o panorama podia hoje ser muito diferente. O Partido Comunista Chinês, por outro lado, tem enfrentado pouca ou nenhuma oposição pública às suas regras draconianas. Essa apatia tem resultado num verdadeiro pesadelo para os cidadãos. A certa altura, as acções governamentais quase parecem uma experiência desenvolvida sobre a população no sentido de apurar as doses de tortura psicológica e opressão que os seres humanos estão dispostos a suportar.

Em 2020 e 2021, os incondicionais dos mandatos Covid celebravam de forma algo incontinente a maneira como a China impediu a propagação da doença, enquanto o mundo ocidental se afundava no caos pandémico porque nos recusávamos a aceitar a tirania médica em nome de um “bem maior”. Agora, essas cabeças falantes mudaram de assunto, necessariamente, na medida em que o “Império do Meio” continua a braços com uma série de surtos e confinamentos que se sucedem sem um fim à vista. Entretanto, o Ocidente vive já numa relativa normalidade.

Os sistemas autoritários exigem a participação das pessoas. Os cidadão têm que colaborar para que a tirania funcione e sobreviva à sua voraz vontade de poder. Temos de nos perguntar: será que os chineses ainda se lembram das razões pelas quais estão a ser confinados, restringidos e humilhados? Ou será que acabaram por aceitar os mandatos como o novo normal?

Actualmente, os testes em massa são uma prática regular na maioria dos principais centros populacionais da China. Quase todas as grandes empresas ou edifícios governamentais exigem a prova de um teste negativo. Esta testagem incessante faz parte da política “Zero Covid” da China, e tem levado à instalação de centros de despistagem em quase todos os bairros urbanos.

A China tem vindo a aperfeiçoar a utilização de códigos QR e aplicações de rastreio para manter o público catalogado e os infectados sob apertado controlo; sem a aceitação destas tecnologias, um cidadão chinês não conseguiria viajar, encontrar emprego ou simplesmente exercer o consumo de bens e serviços. Morreria primeiro de fome; a ideia de morrer por Covid seria a última coisa a passar-lhe pela cabeça.

Embora os testes detectem frequentemente casos assintomáticos, o governo não reconhece a diferença entre os diversos estágios da infecção e trata cada caso como se fosse o Paciente Zero num apocalipse zombie. Por exemplo, um rapaz de seis anos de idade com Covid assintomático testou positivo e foi localizado através de aplicações de rastreio numa loja da IKEA em Xangai, uns dias antes. Em vez de admitir que os testes e o rastreio são um sistema falhado que nada faz para evitar a propagação da doença, as autoridades tentaram, em vez disso, fechar o edifício IKEA com centenas de pessoas lá dentro, durante uma semana. Eis o resultado:

 

 

A loucura dos testes chegou mesmo a alastrar aos animais. O governo está agora a testar 5 milhões de pescadores, bem como a realizar testes aleatórios ao pescado (!) que é descarregado por navios de pesca comerciais em portos chineses.

 

 

A imagem de um peixe morto a ser testado é até hilariante, mas será talvez pertinente sublinhar que o Partido Comunista Chinês saberá bem que o vírus não é transmitido através dos alimentos. Mais provavelmente, o que está em causa é a prossecução de uma tempestade de condicionamento público para convencer a população de que a Covid é uma ameaça omnipresente, para todo o sempre. O objectivo é alimentar uma campanha de medo constante para tornar as pessoas mais complacentes e conformistas. Trata-se na verdade de um estudo sobre os limites do exercício do poder. Na China, pelos vistos, esse exercício do poder não tem grandes limites, como aliás Mao Zedong já tinha demonstrado.

O horror orwelliano que se vive na grande potência oriental aniquilou entretanto a sua indústria turística. Milhões de potenciais visitantes estrangeiros temem agora que possam ficar presos dentro das fronteiras da China. A economia sofre imenso com esta cultura de confinamentos sucessivos e gratuitos, mas o Comité Central não se importa com esse desastre. A experiência em curso é mais importante do que qualquer outro factor. E uma vez que um governo obtém este tipo de poder absoluto e invasivo sobre a população, não se deterá em nada para o manter. Embora o Ocidente tenha muitos problemas a resolver e muitos elitistas com tiques autoritários em posições de poder que é necessário destronar, os acontecimentos dos últimos 3 anos mostram que a democracia, o estado de direito, as liberdades individuais e as garantias constitucionais ainda têm uma chance de voltar a vigorar em pleno. Infelizmente, na China, os cidadãos estão de tal forma condicionados à obediência que será muito difícil algum dia sonharem com essas liberdades e garantias, sem as quais é impossível escapar à tirania.