No principio era Homero. A fundação da literatura ocidental reside nos dois épicos que contam a história da guerra de Troia e do regresso de um dos seus heróis. Nos cerca de 30 mil versos em hexâmetro datílico da Ilíada e da Odisseia estarão encerradas todas as tramas, narrativas e intrigas que vieram depois a ser desmultiplicadas pela cultura helénica, latina, anglosaxónica e eslava dos 30 séculos subsequentes. É muito, mas mesmo muito difícil ler uma novela cujo enredo não derive de um segmento, mesmo que breve, dos textos homéricos.

Dinesh D’Souza faz aqui uma muito breve introdução ao seu curso curto sobre a obra, que o ContraCultura irá publicar no decorrer das próximas semanas.

 

 

Mas o que é um épico afinal? Para o gregos antigos era apenas uma história, contada oralmente por bardos em festivais religiosos que mais tarde acabavam por ser cristalizados em manuscritos. Depois, o termo passou a significar o relato de feitos heróicos ou de jornadas aventurosas, de conquistas gloriosas e de batalhas decisivas e monumentais, decididas pela coragem dos homens ou pelo capricho dos deuses, tudo circunstâncias presentes no universo homérico.

Num certo sentido de intenção generalista, podemos afirmar que a IIíada é um épico da guerra e da conquista e que a Odisseia é um épico da paz e da viagem, embora as duas narrativas partilhem muitos dos elementos constituintes dessas categorias e sejam centradas no evento da Guerra de Troia.

A acção da Ilíada e da Odisseia dura vinte anos (a década do cerco de Troia e a década do regresso de Ulisses) e decorre, na sua maior parte, nas águas e nas praias do mar Egeu. Acredita-se que Troia se localizava na costa noroeste da Turquia actual, e os dez anos de deambulações que Ulisses perfaz para voltar a ítaca, uma ilha da costa ocidental da Ggrécia, estenderam-se um pouco por todo o Mediterrâneo, mas incidiram especialmente nesse mar denso de ilhas e gentes e lendas que é delimitado a oeste e a norte pela Grécia, a este pela Turquia e a sul pela ilha de Creta.

 

 

Os acontecimentos relatados nas duas obras datam provavelmente do século XII a.C., as narrativas foram estruturadas por volta do século VIII a.C e o conhecimento que temos da obra remonta ao século V a.C.

A linguagem homérica constitui uma espécie de proto-grego clássico, combinando dialectos diferentes e formas arcaicas, resultando, por isso, numa língua artificial, porém compreendida pelos cidadãos da civilização helénica à época em que a obra começou a ser contada oralmente.

Ao contrário dos leitores e dos críticos modernos, os gregos antigos acreditavam que a guerra de Troia tinha acontecido como contada nos versos de Homero. A história não era mítica, mas documental. E os deuses tinham intervido de facto na guerra. É preciso sublinhar que os povos helénicos, pelo menos até ao surgimento das escolas filosóficas de Atenas, acreditavam que os deuses viviam na Terra, no Monte Olimpo e que interagiam com os homens. A comunidade divina era populosa e as entidades transcendentes apresentavam características humanas: eram vítimas de falhas de carácter, como a irascibilidade, a inveja, a soberba e o ciúme, bem como capazes de comportamentos virtuosos, piedosos e apaixonados.

 

A Ira de Aquiles . Michael Martin Drolling . 1819

 

As histórias épicas de Homero, e mais tarde as tragédias clássicas gregas, tinham por fundamento a cristalização desses tempos remotos em que os homens interagiam com os deuses. Como acontece no Antigo Testamento, em que Adão e Eva, Abraão e Moisés, por exemplo, têm contacto directo e entram em diálogo com Deus, heróis homéricos como Aquiles e Ulisses e Agamemnon eram tidos como os últimos humanos a conviver com o divino.

É em parte por isso que as duas narrativas ganham contornos de transcendência e monumentalidade, constituindo, como as escrituras sagradas, um manual de normas para a sobrevivência física e espiritual das pessoas, condenadas à difícil experiência da vida, e guardando ensinamentos fundamentais sobre a natureza humana, a condição divina, a moralidade ou imoralidade da guerra, o preço da paz e o significado último da existência.

A autoria destes textos sempre foi questionada, sendo que a maior parte dos historiadores, críticos e exegetas contemporâneos consideram que Homero, a ter existido, não criou os dois épicos, limitando-se a coligir várias tradições orais originárias de regiões helénicas diferentes e até de diversas formas de falar o grego. Neste contexto, o autor da Ilíada e da Odisseia é uma personificação coletiva de toda a memória grega antiga.

Heródoto afirmou que Homero viveu 400 anos antes da sua época, o que o colocaria cronologicamente nos anos de 850 a.C., mas outras fontes antigas deram datas muito mais próximas da suposta época da Guerra de Troia, dada como ocorrida entre 1194 e 1184 a.C. por Eratóstenes, que se esforçou para estabelecer uma cronologia rigorosa dos eventos, sendo que esta data tem sido corroborada por pesquisas arqueológicas recentes.

 

Ulisses e as Sereias . John William Waterhouse . 1891

 

Além das duas grandes epopeias, são a Homero atribuídas 3 outras obras: as Margites, poema cómico sobre as aventuras e desventuras de um herói trapalhão; a Batracomiomaquia, paródia burlesca da Ilíada que relata uma guerra fantástica entre ratos e rãs, e uma colecção de hinos.

A influência homérica é clara em obras clássicas posteriores, como a Eneida, de Virgílio, Os Lusíadas, de Camões, ou Ulysses, de James Joyce, mas não se limita aos clássicos. A ira de Aquiles e as aventuras de Ulisses formam a matriz de grande parte das narrativas modernas, desde a literatura ao cinema. Em português, bem como em diversos outros idiomas, a palavra odisseia passou a referir qualquer viagem longa ou jornada acidentada.

Na verdade, é até difícil contar uma história, ou criar um herói, cuja estrutura de alguma forma não esteja já encerrada na literatura homérica.

A obra eterna e iniciática de Homero, enraizada na cultura e no aparelho psicológico do ocidente, será dissecada com maior minúcia, nos artigos desta série, a publicar em breve no ContraCultura.