Não é novidade que a Netflix tem uma visão muito particular da História. E se no princípio a sua intenção propagandista e falsificadora da realidade dos factos se limitava à ficção, de que talvez o exemplo mais gritante tenha sido a série “Vikings: Valhalla”, em que uma actriz africana interpretava o papel de chefe da uma cidadela nórdica do século XI, a plataforma optou entretanto por produzir “documentários” onde são introduzidas como verdades históricas narrativas falsas, como aquela em que Cleópatra, a rainha grega da dinastia ptolemaica que governou o Egipto, é retratada como uma mulher negra.

No contexto de querer fazer passar os seus delírios transformistas por paradigmas factuais, a Netflix lançou este ano a série documental “Alexandre: O Homem, o Deus” em que o imortal conquistador é retratado, não como negro, o que seria talvez excessivo mesmo para os destrambelhados produtores executivos da plataforma, mas como homossexual impenitente, aparentemente incapaz até de ter relações sexuais com mulheres.

Embora não existam provas concretas sobre o comportamento sexual do homem que aos 30 anos já tinha criado um dos maiores impérios da história da humanidade, a Netflix decidiu retratá-lo como um homossexual profundamente apaixonado pelo seu amigo de infância e comandante militar Heféstio, aludindo também a uma completamente inventada relação amorosa com um dos seus generais, Ptolomeu (precisamente o mesmo personagem histórico que fundou a dinastia ptolemaica de que Cleópatra era herdeira).

Alexandre, o Grande, casou três vezes, teve vários filhos ilegítimos e um legítimo, Alexandre IV, filho de Roxana de Báctria. Mas sempre que o documentário nos mostra cenas de intimidade explícita de Alexandre, essas sequências retratam relações homossexuais.

E se é verdade que as relações homossexuais eram, em certo sentido, toleradas em períodos e em contextos específicos da Grécia Clássica, há que considerar as nuances:

– As relações sexuais entre homens eram toleradas pela sociedade grega como rituais de iniciação ou contingências da vida militar. Mas não eram aceites como um modo de vida ou uma opção existencial ou ideológica;

– Os gregos da Macedónia e da corte de Filipe II, pai de Alexandre o Grande, eram considerados especialmente brutais, rudes e viris. Muito dificilmente Alexandre poderia assumir uma relação homossexual neste ambiente e, ainda assim, ascender ao trono;

– O facto de um homem grego da antiguidade clássica ter relações sexuais com outros homens não o enquadra de todo com a ideologia de género ou a cultura gay contemporâneas. Pelo contrário, o contacto sexual entre homens era muitas vezes decorrente de um certo desprezo pelas mulheres, da intensificação da camaradagem juvenil ou militar e, só em casos extremos – vistos pela sociedade como patológicos – é que resultava na efeminação do homem.

Também é verdade que o historiador Arriano de Nicomédia, uma das mais respeitadas fontes sobre Alexandre, escreveu que Heféstio foi a pessoa a quem Alexandre mais amou em toda sua vida. Mas essa afirmação não implica uma relação homossexual, porque os laços fraternos eram fundamentais e extremamente valorizados na vida militar e política dos grandes líderes da antiguidade, na medida em que constituíam âncoras de confiança e estabilidade num mar perigoso de incerteza, cobiça, traição e dissimulação. E mesmo que uma relação sexual entre os dois homens tivesse ocorrido, isso não significa que fosse frequente ou duradoura, ou que defina a biografia do grande conquistador.

Depois, há que considerar a pertinência de focar a biografia daquele que é talvez o maior génio militar da história na sua sexualidade. Ao reduzir a complexa personalidade de Alexandre a um único aspecto da sua identidade, que para além de tudo o mais é incerto, o documentário arrisca-se a simplificar demasiado o seu carácter e a negligenciar os seus contributos significativos para a História, como as suas proezas militares, a sua liderança visionária, ou o incrível rasto de civilização que deixou numa vastíssima área do planeta.

Deve ser essa, claro está, precisamente a intenção por trás desta produção, porque ao desvirtuar e distorcer a figura de Alexandre, o Grande, estamos na verdade a desvirtuar e distorcer toda o seu legado e, por consequência, a substância da cultura ocidental, para a qual muito contribuiu a civilização helénica em geral, e a gloriosa gesta de Alexandre em particular.

A produção da Netflix serve no entanto uma boa causa (embora inadvertidamente): a de alimentar o debate sobre o rigor histórico versus a licença artística na produção de documentários. Embora a interpretação artística possa seduzir mais públicos para a narrativa dos factos históricos, um documentário, por definição, deve ser fiel sobretudo às evidências disponíveis, permitindo a especulação quando elas são escassas, como é o caso, mas evitando estruturar a narrativa em pressupostos ficcionais. A série da Netflix sobre Alexandre é neste sentido completamente irresponsável e só contribui para descredibilizar o género documental. Mais a mais, a decisão de retratar Alexandre como homossexual logo nos primeiros 8 minutos do primeiro episódio, sem qualquer prova de que esse retrato seja fiel à vida do biografado, justifica um escrutínio crítico devido ao seu potencial para ofuscar a complexidade matizada da sua vida e do seu legado.

Mas considerando que vivemos nestas primeiras décadas do século XXI um processo revolucionário de demolição da verdade, tanto na sua dimensão política como científica, nada já nos devia espantar, embora essa incapacidade, esse cansaço, esse desistir da indignação seja, pensando bem, como que um assumir de que perdemos, em definitivo, a guerra cultural.