A sociedade veste o medo de festa e chama-lhe cultura.
Mas há uma diferença profunda entre celebrar a morte e celebrar os mortos. A primeira afasta-nos do sentido; a segunda reconcilia-nos com o mistério.
O Halloween (noite de 31 de Outubro) alimenta o comércio das sombras; o Dia de Todos os Santos (1 de Novembro) alimenta a memória da luz. O Advento do Estranho e a Memória do Sagrado.
Num tempo em que se poderia celebrar a autenticidade dos costumes locais, assiste-se à estranha ascensão do Halloween. Esta festividade importada, com o seu fascínio pelo macabro e pelo efémero, vai gradualmente ofuscando o significado profundo de uma tradição enraizada: a comemoração do Dia de Todos os Santos.
Esta, independentemente da base que a motiva, é um momento de recolhimento e de raiz. Materializa-se em reuniões familiares e nas visitas serenas aos cemitérios, gestos simples que têm por fim primordial recordar os que partiram e, assim, honrar a herança que nos define. É uma celebração que valoriza a memória afetiva e a continuidade cultural.
No entanto, o significado cristão deste feriado vê-se agora ameaçado por uma cortina de névoa e fantasia. Enquanto a fé cristã celebra a vida eterna e a santidade, que é um olhar de esperança voltado para a transcendência, o Halloween oferece um culto ao medo e a uma certa fealdade vazia. Para aqueles que anseiam por esta estética do tenebroso e do desprovido de sentido, ele representa a celebração de um feriado profundamente deprimente, um espetáculo vazio que esquece a serenidade da eternidade em favor do susto passageiro.
Ao longo do tempo, tradições e costumes diversos sobrepõem-se. A Igreja Católica, num processo de inculturação, adaptou vários costumes bárbaros à nova cultura vigente, criando rituais substitutos. Um exemplo notável é a substituição dos rituais pagãos destinados a afugentar o medo da morte pela celebração do Dia de Todos os Santos. Atualmente, contudo, são os interesses comerciais que mais proveito tiram destas tradições, ao promoverem e acentuarem os antigos ritos, como se vê na popularização do Halloween.
Talvez o desafio de cada um de nós hoje seja devolver às nossas crianças o sentido do sagrado, para que saibam que, na eternidade, a morte não é um fim, é apenas um novo começo de amor.
ANTÓNIO JUSTO
___________
António da Cunha Duarte Justo é um pensador e viajante de culturas: filósofo e teólogo de formação, escritor por vocação e comunicador por missão, dedica a sua vida a lançar pontes entre Portugal e Alemanha. Autor do blog Pegadas do Tempo.
Relacionados
16 Nov 25
De amores e relógios.
Amar é sempre sofrer um pouco – não por castigo, mas por grandeza. Só o que ultrapassa os limites da carne pode doer assim. O amor é o peso do infinito sobre um coração finito. Uma elegia de Walter Biancardine.
12 Nov 25
Tremembé: o glamour do abismo.
Há quem, com um certo orgulho, já chame 'prédio das estrelas' ao infame presídio. Espantem-se: não se trata de personalidades públicas que cometeram crimes, mas de criminosas brutais que se tornaram famosas justamente pelos crimes que cometeram. Uma crónica de Silvana Lagoas.
8 Nov 25
DREX: o medo da transparência total ou quando a moeda fala demais.
O DREX nasceu como a versão digital do real, inteligente e rastreável, que prometia segurança, inovação e inclusão. Mas o projecto foi suspenso porque o Estado brasileiro, habituado a vigiar, descobriu o desconforto de ser vigiado. A crónica de Silvana Lagoas.
7 Nov 25
Globalismo vs Nacionalismo
Nacionalismos e populismos contemporâneos são uma reacção à arrogância das elites globalistas e da sua governação distante e centralizada, propondo um regresso à identidade, à soberania e à autodeterminação. Uma crónica da Francisco Henriques da Silva.
4 Nov 25
Psicopata americano: “Estamos a matar as pessoas certas”.
Lindsey Graham rejubila porque os EUA estão a matar tanta gente que os seus arsenais registam falências superiores àquelas que foram observadas na II Guerra Mundial. É um todo poderoso psicopata e o logótipo vivo da mais tresloucada nação do século XXI.
4 Nov 25
A bala perdida não tem origem, tem destino.
As operações mais letais nas áreas urbanas controladas por criminosos e milícias voltam a expor o mesmo impasse: quando o Estado brasileiro entra em guerra com o crime, quem paga o preço é sempre o cidadão comum. Uma crónica de Silvana Lagoas.






