Há quem ainda acredite que, no auge das tensões políticas brasileiras, as Forças Armadas poderiam ser obrigadas a intervir para restaurar a ordem — como se fossem árbitro imparcial, um “poder moderador” com farda e coturno. Pura ingenuidade, comparável à fé depositada, durante anos, no Supremo Tribunal Federal como guardião da Constituição.

Para o leitor português, convém recordar o que está em causa: em 1988, após o fim do regime militar (1964-85), o Brasil promulgou uma nova Constituição que prometia ser a consagração da democracia. O então presidente José Sarney, no entanto, já advertia: “esta Constituição tornará o país ingovernável”. E assim foi.

O sistema político resultante produziu um Congresso que, em vez de mediar Executivo e Judiciário, se transformou em refém dos dois: depende do dinheiro e das benesses distribuídas pelo governo, enquanto se curva às chantagens e às conveniências da justiça. Como o lobby é formalmente ilegal no Brasil, o que sobra é um balcão de negócios subterrâneo, onde cargos e favores valem mais que qualquer urgência económica ou clamor popular.

Quando o Legislativo falha — o que é regra, não exceção —, parte da sociedade volta os olhos para os militares, como se ainda representassem a reserva moral da pátria. Mas este é outro engano. O mesmo processo de aparelhamento que corroeu tribunais e ministérios atingiu também quartéis e comandos. Generais viraram síndicos de estatais, almirantes gestores de planilhas e brigadeiros lobistas de gabinete.

Os que sonham com tanques nas ruas esquecem que estes foram substituídos por consultorias, jetons e conselhos de administração. As armas cederam lugar ao silêncio cúmplice perante um Executivo que governa por decreto, um Judiciário que legisla sem voto e um Legislativo que se prostitui em troca de cargos. Não há heroísmo no alto comando — apenas covardia adornada de medalhas.

Eis o resultado da República de 1988: um monstro de três cabeças. Políticos sem povo, juízes sem lei e militares sem honra. Esperar deles qualquer reação é a mais cruel das ilusões. No Brasil, até o colapso é administrado: calculado, controlado e convertido em capital político para perpetuar quem já manda.

Não se trata de um “impasse institucional”, mas de um pacto mafioso, no qual cada poder garante a sobrevivência do outro, desde que o povo permaneça na condição que lhes convém: impotente, endividado e entretido. Esta é a farsa democrática brasileira — não morta, mas a apodrecer em praça pública desde 1988.

 

 

MARCOS PAULO CANDELORO

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Marcos Paulo Candeloro  é graduado em História (USP – Brasil), pós-graduado em Ciências Políticas (Columbia University – EUA) e especialista em Gestão Pública Inovativa (UFSCAR – Brasil). Aluno do professor Olavo de Carvalho desde 2011. É professor, jornalista e analista político. Escreve em português do Brasil.

As opiniões do autor não reflectem necessariamente a posição do ContraCultura.