Todos conhecem – ou, ao menos, deveriam conhecer – a passagem bíblica onde a serpente oferece à Eva a maçã, para que comesse o fruto proibido e soubesse o bem e o mal, sendo igual a Deus.
Tal passagem, entretanto, esconde diversos detalhes fora do alcance do cristão mediano, ou mesmo da maioria dos diletantes que, eventualmente, folheiam a Bíblia. Nos parágrafos abaixo levanto alguns questionamentos que julgo interessantes ter em mente, para uma maior compreensão daquelas linhas – do nome da serpente em hebraico – Nahash, que tanto significa “serpente” quanto “voltar-se sobre si mesmo” física e psicologicamente – até sua correlação com a introspecção e mesmo (no meu caso) com a solidão, por vezes causadora da mesma.
Em meu ponto de vista, a serpente foi escolhida – entre outros simbolismos – por sua malignidade e pela capacidade de dobrar-se sobre si mesma, voltar à si que, como disse, interpreto como “introspecção”. Teria sido a desobediência de Eva uma “introspecção” da mesma, ao refletir e julgar – de acordo com si própria – que seria bom comer a maçã e saber o que é bom e mal? E mais: seria este ato, “saber”, somente isso ou esta seria uma narrativa sutil para “determinar” o que é bom ou mal? A introspecção seria, de alguma forma, mal vista nos primeiros Livros?
É o que veremos.
Nahash, a introspecção e o pecado de Eva – entre o julgamento e a queda
Desde os primórdios da Revelação, a figura de Nahash, a serpente do Éden, carrega um simbolismo pesado, denso, quase viscoso. Não é apenas um bicho rastejante que um dia falou com Eva – isso seria alegoria simplória. Estamos diante de um ícone do intelecto corrompido, da astúcia preternatural, e – como observei – da capacidade de se voltar sobre si, de se enroscar, de fazer de si mesma o seu próprio horizonte. E aqui reside o ponto-chave: a introspecção que fecha o mundo em si.
A serpente é um símbolo ancestral e ambíguo. Em muitas culturas, é sabedoria; noutras, é veneno. Mas na tradição hebraica, e depois cristã, ela é a voz do cisma, a boca do engano, a oferta da autonomia que repele a Lei. O que ela oferece não é apenas o fruto – é o princípio de autonomia moral, o direito de Eva tornar-se “como Deus”, decidindo por si mesma o que é bem e mal.
Aqui entramos na tese que pretendo expor: seria essa escolha uma forma de introspecção? Sim, e perigosamente sim. Eva olhou para dentro, julgou a fala da serpente com seu próprio critério, e decidiu. Não obedeceu, interpretou; não creu, comparou. E ao fazer isso, rompeu com o princípio mais basal da fé: a confiança na ordem externa, na hierarquia recebida.
A introspecção como gênese da rebelião
A introspecção, no sentido moderno, romântico e pós-cartesiano, é quase sempre celebrada como virtude. Mas nos cânones antigos, tanto patrísticos quanto veterotestamentários (do Velho Testamento), ela era vista com muita desconfiança. A alma, deixada a si mesma, é uma floresta sombria. Não é à toa que os monges do deserto diziam: foge da tua própria opinião como foges da serpente. Veja só a ironia: fugir da serpente é fugir da própria opinião.
Quando Eva decide, introspectivamente, que aquilo é “bom para comer”, “agradável aos olhos” e “desejável para adquirir sabedoria”, ela assume o papel de legisladora moral. Isso é modernidade avant la lettre. Ou seja, não se trata apenas de “saber” o bem e o mal, como quem lê uma enciclopédia. Trata-se de determinar, ou pelo menos de se posicionar como igual a Deus nesse julgamento – uma precursora, séculos à frente, do Iluminismo.
O texto é claro: “sereis como deuses, conhecedores do bem e do mal”. Mas o hebraico pode sugerir também “determinadores” do bem e do mal, como quem edita uma nova versão da Lei, agora centrada no próprio umbigo.
A serpente: símbolo da introspecção caída
É fato que a serpente se enrola em si mesma, mas isso também é metafísico. O mal não é criativo – ele é reflexivo ao ponto de se tornar narcisista. Ele não sai de si, não reconhece um princípio externo, superior. A serpente é o intelecto fechado, a razão sem humildade, o logos sem telos. Ela oferece a Eva não o saber em si, mas o saber sem guia, o saber como posse, o saber como soberba.
Eva, ao ceder, pratica a primeira forma de existencialismo egoísta. Ela não pergunta a Deus, não consulta Adão, não reflete na comunhão dos santos – ela ouve, vê, decide. Isso é introspecção, sim. Mas é a introspecção herética, a que se volta para si não para corrigir-se, mas para julgar o mundo.
Introspecção ou confiança?
Os antigos Padres, sobretudo Santo Antão, São Basílio ou Santo Atanásio, deixaram claro que o maior perigo da alma não é o mundo, mas o próprio pensamento solto, sem guia, sem mestre, sem oração. A serpente sussurra dentro, e o pecado começa quando damos ouvidos a esse sussurro interno como se fosse oráculo.
Portanto, sim, a desobediência de Eva pode ser lida como um gesto de introspecção – mas de uma introspecção que se fez trono, um trono usurpado. Não é à toa que Cristo, o novo Adão, faz o caminho oposto: Ele obedece até a morte, não faz da sua vontade um critério absoluto, mas submete-se ao Pai.
Introspecção pode ser virtude, se for penitente. Mas quando é soberana, quando se fecha em si como a serpente que se morde o rabo, então é desgraça. É o Éden que se fecha para sempre.
Temperando um pouco mais a sopa:
A “introspecção” nos dias de hoje, para o homem moderno e que, por vezes, vê-se em posição solitária, de abandono e inevitavelmente volta-se sobre si mesmo, é quase um disfarce chique para uma série de problemas. Isso pode levá-lo a entender sua verdadeira força, sua resistência às adversidades e mesmo aproximá-lo com Deus, mas igualmente pode descambar para um excesso de auto-confiança e bloqueios em sua capacidade de socializar – até por enxergar o próximo sempre como alguém incapaz de atingir as profundidades que ele, via sofrimento e solidão, atingiu.
É o narcisismo existencial travestido de profundidade espiritual.
A introspecção moderna: espelho ou abismo?
O homem moderno, arrancado de suas raízes, sem comunidade verdadeira, sem família extensa, sem tradição viva, foi jogado nu no deserto da subjetividade. E o que ele fez? Sentou-se no chão da alma e começou a escavar. Chamaram isso de “autoconhecimento”, de “busca interior”, de “caminho espiritual”. Mas o que muitas vezes acontece é uma masturbação psicológica: o sujeito se contempla como um abismo cheio de ecos e acredita que, por ouvir sua própria dor repetida mil vezes, crê haver chegado à verdade.
Claro, há mérito no sofrimento que não reclama, na solidão que forma caráter. Como disse acima, às vezes é nesse silêncio imposto que o homem reencontra a força, a essência, e até ouve Deus – porque Deus fala baixo, e o mundo grita alto. Há santos que se fizeram no deserto, mártires que foram esculpidos pela ausência. Mas, atenção: o risco maior não está no deserto, mas na tentação de se crer faraó depois de atravessá-lo como peregrino.
A falácia do eleito pelo sofrimento
O homem que sofre sozinho, que enfrenta a si mesmo pode, sim, adquirir sabedoria. Mas também pode adquirir arrogância disfarçada de lucidez. Ele olha os outros e pensa: “Esses aí vivem na superfície, são banais, não me alcançam.” Pronto. Está feita a cisão entre ele e o mundo. A introspecção, que deveria gerar humildade, gera soberba. O deserto, que deveria conduzir à comunhão com Deus e ao amor pelos outros, vira trincheira contra o próximo.
Essa é a serpente moderna: o sujeito dobra-se sobre si mesmo, não como quem se examina para confessar, mas como quem se admira por ter sobrevivido à tempestade. A alma, em vez de penitente, vira oráculo. O ego sai da caverna achando-se Moisés, mas sem ter falado com Deus.
Do autoconhecimento à misantropia
A consequência inevitável é o isolamento não mais como contingência, mas como escolha estética. O sujeito se refugia numa espécie de misantropia sutil, um desprezo velado pelos outros, sempre considerados rasos, mundanos, sem a “profundidade” que ele próprio conquistou. Isso não é introspecção – é altivez. Não é sabedoria – é solidão vaidosa.
E isso mata a capacidade de amar. Porque amar é se abaixar, é estender a mão ao outro mesmo quando ele parece pequeno. O homem que só vê a si mesmo como profundo não consegue mais amar: ele só tolera, com uma ponta de desprezo.
O remédio: tradição, oração e serviço
O antídoto, como sempre, está nos velhos caminhos. Introspecção só presta se for diante de Deus, com a Escritura aberta e o joelho no chão. Caso contrário, ela se volta contra si como a serpente que devora o próprio rabo. E o homem que se isola por orgulho do que sofreu termina pior do que aquele que nunca sofreu: termina idolatrando a própria dor e desprezando o próximo.
Portanto, e com toda a modéstia, creio estar certo – mas com uma ressalva grave: quem volta-se para dentro sem voltar-se para Deus, acaba encontrando um espelho, não um altar.
Só eu sei os desertos que atravessei
Nas histórias bíblicas os santos sempre se retiram para o deserto, a solidão, para receberem revelações ou a iluminação. Do mesmo modo, Deus só se manifesta nesses desertos quando os atravessamos. Haveria alguma contradição entre a introspecção (Nahash) e a solidão reveladora do deserto?
Não, não há contradição – há distinção. E ela é essencial.
O que há em comum entre Nahash e o deserto é o silêncio interior, a suspensão do ruído do mundo. Mas o conteúdo desse silêncio é diametralmente oposto. A introspecção serpentina é autorreferencial. Já a solidão bíblica é teorreferencial. Uma busca dentro de si pelo próprio trono. A outra, uma travessia para encontrar Deus e ser esmagado pela sua presença.
Nahash: o ego que se contempla
A serpente não propõe silêncio – propõe julgamento. Ela sussurra, sim, mas para convencer a alma de que ela mesma pode ser critério do bem e do mal. A introspecção que ela representa é o sujeito que mergulha em si para achar ali a legitimidade de sua vontade, não a verdade. Ele não quer escutar – ele quer declarar.
Esse é o drama moderno, aliás: a solidão sem humildade vira culto ao ego. O sujeito entra no “deserto” com o celular na mão e sai de lá achando que é um messias pop – um coach espiritual.
O deserto bíblico: a aniquilação do ego
O deserto dos santos, por outro lado, não é para ouvir a si mesmo – é para calar a si mesmo. Não é introspecção, é esvaziamento. Moisés sobe o Sinai e treme. Elias vai para a caverna e ouve um sussurro que quase o desmonta. Jesus entra no deserto e é tentado por Satanás, justamente com os mesmos delírios de autonomia que Nahash ofereceu no Éden: poder, pão, glória – sem cruz.
O deserto não é lugar de autoexpressão. É campo de batalha. Ali, ou Deus fala – ou você enlouquece. O verdadeiro deserto espiritual não confirma o ego. Ele o destrói.
Conclusão: o eixo é a direção do olhar
A introspecção serpentina olha para dentro para encontrar poder.
O deserto bíblico olha para dentro para reconhecer a miséria.
E de lá, olha para cima.
Quem se volta para si e encontra um trono, caiu.
Quem se volta para si e encontra um abismo, pode ser salvo – se gritar por socorro.
O deserto é o ventre da transformação. Mas só gera santos quando o homem se reconhece pequeno. Se ele entra querendo sair maior, volta com um demônio a mais. Como disse Evágrio Pôntico: “Foge dos pensamentos que te elogiam. São os primeiros a te trair.”
Então, não: não há contradição entre deserto e introspecção – há o combate entre dois modos de viver o silêncio.
E o saber, a introspecção e a solidão exigem virtude.
WALTER BIANCARDINE
___________
Walter Biancardine foi aluno de Olavo de Carvalho, é analista político, jornalista (Diário Cabofriense, Rede Lagos TV, Rádio Ondas Fm) e blogger; foi funcionário da OEA – Organização dos Estados Americanos.
As opiniões do autor não reflectem necessariamente a posição do ContraCultura.
Relacionados
15 Mai 25
Investigadores afirmam ter encontrado a Arca de Noé.
Investigadores americanos que trabalham na Formação Durupinar, situada a 30 kms do Monte Ararat, descobriram provas de estruturas angulares, corredores e uma área de porão soterrada na montanha, que podem confirmar a veracidade histórica da Arca de Noé.
14 Mai 25
Igreja Episcopal termina parceria de acolhimento de refugiados com o governo dos EUA por “oposição moral” ao asilo de cristãos brancos sul-africanos.
A liderança da Igreja Episcopal norte-americana anunciou que vai cessar a sua parceria de quase 40 anos com o governo federal, porque Trump ousou classificar os sul-africanos brancos e cristãos como refugiados.
12 Mai 25
Gaudium Magnum
A Igreja de Cristo é dona de uma realidade exclusiva: a tristeza da orfandade é, em poucos dias, superada pela alegria da sucessão paternal. Um sinal de resiliência num mundo onde nada parece permanecer. Uma crónica de Paulo H. Santos.
12 Mai 25
Aborto, alterações climáticas, ideologia de género e pena de morte: o Papa Leão XIV nas suas próprias palavras.
O recém-eleito Papa Leão XIV é amplamente considerado como uma figura cautelosa - mas não tem sido tímido nos últimos anos em falar sobre questões polémicas, desde o ensino da ideologia de género nas escolas às alterações climáticas.
9 Mai 25
Submissão em Itália: jardim de infância católico leva crianças cristãs a uma mesquita para se ajoelharem e louvarem Alá.
Crianças com 3 a 5 anos de idade de um infantário católico privado em Itália foram levadas numa viagem de um dia a uma mesquita onde se ajoelharam na direcção de Meca para louvar Alá. Um ritual de humilhação sob disfarce ecuménico.
30 Abr 25
A grande disputa de opiniões.
É preciso dizer o óbvio: a Igreja não é democracia. A Igreja é o Corpo Místico de Cristo. E o Conclave não é um concurso de vaidades. É guerra espiritual. Uma crónica da Paulo H. Santos.