A democracia moderna baseia-se em dois pilares fundamentais: liberdade e igualdade. Esses valores sustentam o ideal democrático como modelo de governo. No entanto, surge a questão sobre a plena vivência desses princípios.
O direito ao voto universal é frequentemente destacado como uma conquista significativa da igualdade democrática, onde cada cidadão, independentemente do seu sexo, etnia, origem social ou religião, possui — teoricamente — o mesmo peso e poder de decisão no momento das eleições. Contudo, na prática, a ideia de igualdade absoluta ainda se mostra revolucionária, pois fora das urnas, a desigualdade prevalece no acesso à educação, justiça, saúde e representação política.
A presença de desigualdades estruturais impede que a democracia prospere plenamente. Esse sistema enfrenta o paradoxo de necessitar de igualdade para florescer, mas raramente encontra as condições adequadas para tal.
As dificuldades estruturais residem em vários fatores a considerar: primeiro, nem todos têm as mesmas condições materiais para exercer plenamente os seus direitos. A pobreza, a exclusão social e o acesso desigual à educação, saúde e informação resultam em diferentes níveis de cidadania. Em segundo lugar, a liberdade pressupõe escolhas conscientes. No entanto, sem acesso equitativo à informação de qualidade e educação crítica, a liberdade de escolha pode ser limitada ou manipulada. Portanto, a desinformação, os algoritmos das redes sociais e a concentração dos meios de comunicação podem ter impacto no debate público livre e informado. Aqueles que não têm formação para interpretar e questionar o que consomem, tornam-se mais susceptíveis à manipulação política. Em terceiro lugar, em muitas democracias, as elites económicas e políticas podem influenciar o sistema — formalmente democrático, mas funcionalmente oligárquico. Finalmente, a administração pública pode ser lenta, ineficiente ou opaca, dificultando o exercício pleno dos direitos e a confiança nas instituições.
De registar, que historicamente, a democracia nunca foi consensual. A famigerada democracia grega, considerada o berço do conceito, teve uma duração de apenas dois séculos. Grandes pensadores da época, como Platão e Aristóteles, tinham visões críticas sobre este modelo de governo. Platão, na República, considerava o governo da maioria como guiado pela emoção, enquanto Aristóteles, na Política, via a democracia como uma forma corrompida de governo, com o domínio da maioria pobre sobre a minoria rica, em vez de visar o bem comum. Em suma, para os gregos, a democracia era um regime de participação directa dos cidadãos (mas circunscrita aos homens livres atenienses), onde o povo decidia sem representantes. Mas era também excludente, elitista e profundamente limitada em relação aos nossos padrões actuais.
Durante séculos, a democracia foi associada à desordem, até ser resgatada pela Revolução Francesa como um ideal de liberdade e cidadania. Não obstante os avanços e recuos então registados — nem sempre pelas melhores razões — os desvios totalitários e os regimes de terror instaurados, como no período de Robespierre, lançaram fundadas dúvidas sobre a legitimidade dos ideais e intenções proclamados. Ainda assim, mesmo após esse marco histórico, a implementação da democracia revelou-se um processo lento, frágil e profundamente contraditório.
Actualmente, é necessário reconsiderar o significado de viver numa democracia. Não basta cumprir formalidades institucionais ou organizar eleições periódicas; uma verdadeira cultura democrática exige participação informada, justiça social e cidadania activa.
FRANCISCO HENRIQUES DA SILVA
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Francisco Henriques da Silva é licenciado em História, diplomata e autor. Foi Director-geral de Assuntos Multilaterais no MNE e embaixador na Guiné-Bissau, Costa do Marfim, Índia, México e Hungria
As opiniões do autor não reflectem necessariamente a posição do ContraCultura.
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