Longe do nosso alcance, para além da carne e da lógica, brilha uma luz infinita, altiva, insuportavelmente bela. Fonte de toda claridade. Luz das luzes.
Somos criaturas que tateiam. Nascemos com olhos e, por isso mesmo, dependemos da luz, sentimos por ela uma fome antiga. Sem ela, somos cegos. E assim como os olhos se perdem na ausência do sol, também a alma se emudece sem o brilho que a chama para fora de si, para o gesto, para o risco, para a vida.
A manhã nos chama. Cruel, honesta, inevitável. É quando o mundo nos dá um empurrão de volta à carne: deixamos a cama, o útero quente da inércia, e voltamos a andar. A manhã é o parto diário da consciência.
Mas se essa luz que nos acorda é pequena, criada, emprestada — há outra, anterior a tudo. Uma luz que não se esgota. Que não precisa nascer porque jamais conheceu o ocaso. Luz que é Verbo, Sentido, Verdade. Que se fez carne. Que veio ao nosso encontro, como um rei que, por amor, se despe da coroa para andar entre os doentes. Veio resgatar os que jaziam sob a sombra da morte, e em troca do pó, nos deixou a eternidade.
“[…] Pela bondade e compaixão de nosso Deus, que sobre nós fará brilhar o Sol
nascente, para iluminar a quantos jazem entre as trevas e na sombra da morte estão
sentados e para dirigir os nossos passos, guiando-os no caminho da paz. “
(Benedictus – Lc 1,68-79)
A escuridão dos olhos fechados se rende ao clarão da manhã. Assim também a alma se rende à luz de Cristo. A cruz não é mais treva. É farol. Não há sepulcro que não trema diante dessa luz. Da morte jorrou a vida. Do peito rasgado de Cristo brotou a fonte eterna que não seca, que não nega, que não se apaga.
Há um instante em que o coração, ainda sujo de medo e incredulidade, se vê diante dessa luz e não sabe se chora ou se cai de joelhos. Porque a claridade revela. E ao revelar, queima. Tudo o que é mentira, tudo o que é sombra, tudo o que é escuro dentro de nós, estremece diante dessa presença. A luz não nos acaricia. Ela nos convoca. Ela exige uma resposta. E o que não for verdadeiro, não sobreviverá ao seu toque. Por isso, não vamos ao Calvário como quem marcha para o fim. Vamos como quem sobe ao topo para assistir ao milagre. Porque, antes de ser humilhado, Ele foi transfigurado. E a luz, essa luz real, feroz, impiedosa, sempre antecede e sempre vence as trevas.
“A escuridão da antiga noite cedeu lugar à verdadeira luz.”
(São Leão Magno)
PAULO H. SANTOS
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Paulo H. Santos é professor de filosofia, bacharel em Filosofia (UCP- Brasil), escritor, católico e colunista desde 2020. Escreve em português do Brasil.
As opiniões do autor não reflectem necessariamente a posição do ContraCultura.
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