Há algo de profundamente constrangedor em assistir o suicídio cerimonial de uma civilização que já foi o pináculo do espírito humano. Não um suicídio tradicional, rápido, mas uma espécie de eutanásia ideológica consentida. A Europa, que nos legou Aristóteles e Santo Agostinho, que ergueu Notre-Dame e escreveu “Dom Quixote”, hoje se ajoelha — não diante de Deus, mas dos globalistas, suas fundações, ONGs, ONU e das seitas identitárias. O berço da civilização ocidental virou um gulag cultural, onde o pecado capital é lembrar que existe uma história anterior ao século XX.
A velha Europa está cansada, está exausta de si mesma. Recusou o próprio passado como se fosse uma lepra moral. E como todo ente em negação profunda, começou a punir os que ainda se lembram. Hoje, o herege europeu não é mais o ateu — é o patriota, aquele que valoriza suas raízes. Não é o blasfemo — é o cidadão que insiste em proteger sua fé, sua família e sua nação.
A crise migratória? Apenas o sintoma mais visível. A verdadeira crise é interna: moral, política e espiritual. Não é que somente os imigrantes sejam o problema. O problema é o vácuo de sentido que os recebe. E a maior chaga do velho continente são os próprios europeus. Um continente que já não acredita em Deus, na tradição ou na própria soberania não tem anticorpos culturais. Importa povos, mas proíbe fronteiras. Implora por diversidade, mas proíbe diferenças. O multiculturalismo europeu é, no fundo, a negação de qualquer cultura concreta — inclusive a própria.
Bruxelas é o centro nervoso dessa rendição organizada. Seus tecnocratas não falam idiomas vivos — balbuciam jargões neutros em novilíngua progressista. Definem as normas de curvatura da banana com o mesmo zelo com que ignoram os atentados jihadistas em Paris ou Estocolmo. Governam sem povo, sem rosto e, sobretudo, sem responsabilidade. São os assassinos da soberania. A União Europeia se tornou aquilo que Tocqueville temia: uma rede invisível de pequenas regras que mantém os homens em eterna infância.
A liberdade de expressão — uma das maiores conquistas da modernidade ocidental — virou artigo de luxo. Na Alemanha, quem compartilha um meme errado pode ver a polícia bater à porta. No Reino Unido, o berço do parlamentarismo e da Magna Carta, velhos são levados em camburões por “ofensas digitais”. Enquanto isso, Marine Le Pen enfrenta perseguições jurídicas por ser, essencialmente, conservadora. Farage, por sua vez, é tratado como ameaça existencial, enquanto radicais islâmicos gozam da benevolência do Estado e da proteção da BBC.
O que resta da cultura europeia virou peça de museu — e nem isso sem censura. Bach foi trocado por Beyoncé, São Tomás de Aquino por Judith Butler. A academia é um culto ao niilismo. A arte, um panfleto autoflagelante. As igrejas, centros turísticos vazios ou abrigos inter-religiosos, onde o único dogma permitido é a negação de todos os anteriores.
Mas o mais trágico não é a destruição em curso. É o entusiasmo com que ela é celebrada. A Europa não está sendo invadida — está se dissolvendo. Está promovendo sua própria irrelevância com orgulho cerimonial. E isso é celebrado e patrocinado pelas duas potências orientais que têm como objetivo sobrepujar a hegemonia histórica Ocidental, China e Rússia.
Enquanto isso, o europeu já não quer ter filhos. O hedonismo é a nova teologia; a eutanásia, uma escolha digna; e o suicídio civilizacional, um gesto de progresso. Um continente que trocou fé pelo conforto, identidade por interseccionalidade e liberdade por likes.
O resultado é este: uma federação de ex-nações que legisla sobre o carbono, mas não sobre a própria continuidade. Onde o que resta de oposição conservadora é tratado como fascismo e o islamismo radical como diversidade vibrante. Onde se combate o aquecimento global com fervor quase religioso, mas se ignora o congelamento das almas.
A Europa não está sendo apagada. Está se apagando. E o faz com uma elegância lúgubre, como só ela saberia fazer. E mesmo em sua decadência final, permanece fiel a um traço essencial: sua vocação para ensinar. O único problema é que agora só ensina aquilo que não deve ser praticado. Como em Roma, o que levará a Europa à ruína não são os bárbaros em seus portões, mas aqueles que se escondem atrás de suas muralhas.
MARCOS PAULO CANDELORO
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Marcos Paulo Candeloro é graduado em História (USP – Brasil), pós-graduado em Ciências Políticas (Columbia University – EUA) e especialista em Gestão Pública Inovativa (UFSCAR – Brasil). Aluno do professor Olavo de Carvalho desde 2011. É professor, jornalista e analista político. Escreve em português do Brasil.
As opiniões do autor não reflectem necessariamente a posição do ContraCultura.
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