O colonialismo, que existia sob uma forma embrionária desde o século XVI, em África, sobretudo na base de feitorias ou entrepostos comerciais em pontos da costa, sobretudo para fins comerciais (ouro, comércio de escravos e de mercadorias) só se desenvolve, sobretudo, no século XIX. Com efeito, no final do século, com a Conferência de Berlim, (1884-85), procede-se à chamada “partilha de África” entre as potências europeias. O continente mal explorado, mas repositório de inúmeras riquezas, dispondo, porém, de múltiplos grupos étnicos, tribos e línguas é incapaz de fazer frente aos europeus, militar, cientifica e tecnologicamente mais avançados.
Para Bruce Gilley:
“Embora a palavra ‘colonialismo’ tenha sido inicialmente conotada com a fixação de pessoas, no decurso do século XIX, passou a designar mais a fixação de ideias e instituições – nomeadamente a tolerância liberal, o Estado de direito, os direitos de propriedade e a segurança das fronteiras. Foram estas ideias e instituições do Iluminismo, muito mais do que soldados e administradores, que colonizaram o mundo. O envio de colonos, a construção de um forte ou o estabelecimento de uma mina de prata passaram a ser desacreditados como mero ‘imperialismo’. O termo ‘colonialismo’ representava uma vocação mais elevada, em que ‘o objetivo era melhorar a vida dos povos submetidos através da transferência de normas liberais e de instituições de governação impessoais’.1
O colonialismo na sua forma mais dura e hoje denunciada, ou, mesmo caricaturada, implicava, no passado, o aproveitamento dos recursos naturais (máxime, madeira e minério) e humanos de vastas regiões africanas em proveito das metrópoles europeias. Para além dessa exploração que podia assumir formas benignas, mas outras igualmente opressivas, implicava uma aculturação com o colonizador, não só em termos de língua, mas igualmente de hábitos, usos e costumes importados da Europa que entravam em choque com as culturas locais. Há quem fale numa supressão das culturas locais, o que nem sempre corresponde à verdade, pois, em inúmeros casos, essa adaptação era e é naturalmente aceite e incorporada na cultura local. Acresce, ainda, que existiam inúmeros elementos de conflitualidade entre os colonizadores e os colonizados.
Ao longo do tempo, alguns autores criticaram duramente o colonialismo em todas as suas formas, mesmo as mais benignas e a Esquerda em geral aceitou sem titubear e com incontido júbilo estas teses, que nem sequer foram sujeitas ao contraditório. Entre muitos autores, os que mais se distinguiram nas suas diatribes e críticas virulentas contra o colonialismo europeu foram Fritz Fanon (Les damnés de la terre, Maspero, Paris, 1961), Edward Said (Orientalism, Pantheon Books, 1978) e Walter Rodney (How Europe underdeveloped Africa, Bogle-L’Ouverture, Londres,1972).
Não obstante, apesar de todas as críticas e algumas bem severas, o colonialismo também desenvolveu economicamente as colónias criando infraestruturas, (cidades, portos, estradas, ferrovias, aeroportos, redes de saneamento básico, etc.), beneficiou o comércio, introduziu novas culturas e técnicas agrícolas e criou indústrias, importou tecnologias modernas (energia eléctrica, telecomunicações, p. ex.), promoveu a escolaridade e o incipiente Estado de Direito. Foi, sobretudo, fundamental, em 3 aspectos: na abolição da escravatura, na moderação controlada ou, mesmo, no termo das lutas endémicas inter-tribais e na formação da identidade nacional, que os africanos em larga escala desconheciam porque só a realidade tribal ou clânica fazia sentido. Para além dos casos conhecidos de violência, e de toda uma litania repetida ad infinitum de racismo, de violação dos direitos humanos, de exploração económica sem regras e, inclusive, de alegado extermínio de povos autóctones, o certo é que o colonialismo em muito beneficiou as populações locais.
Para Biggar e relativamente ao império Britânico:
“[Este] continha, de facto, alguns preconceitos raciais terríveis, mas não só. Incluía também respeito, admiração e uma benevolência genuína, bem informada e dispendiosa…. Por conseguinte, não se pode dizer com justiça que o império era central e essencialmente racista.”2
Como refere Bruce Gilley:
“É fundamental abordar estes potenciais benefícios com uma perspetiva crítica. Os aspectos positivos acima referidos devem ser considerados a par das muitas consequências negativas do colonialismo, como a exploração dos recursos naturais, o trabalho forçado, a destruição cultural e a imposição de estruturas sociais discriminatórias. O impacto global do colonialismo é um tema profundamente debatido e sensível, e as perspectivas sobre o seu legado podem variar muito consoante os pontos de vista históricos, culturais e individuais.”3
No mesmo sentido se pronunciou Biggar:
“O legado do colonialismo não é simples, mas sim de grande complexidade, com contradições – tanto as boas como as más.”4
É preciso salientar que o estabelecimento de colónias fez-se, muitas vezes, com o beneplácito explícito das populações locais ou mesmo a pedido destas (casos, entre outros, da região de Lagos, na actual Nigéria, de Sarawak, na Malásia e de vários principados – princely states – na Índia). Por outro lado, verificou-se que os territórios sob tutela colonial se desenvolveram mais depressa do que os que haviam ascendido à independência (são os casos, por exemplo, da Malásia-Tailândia, Gana-Libéria, Belize-Guatemala, Etiópia-Quénia, entre outros). Estas comparações sugerem que a única coisa pior do que ser colonizado era não ser colonizado…
Se o colonialismo tivesse sido uma coisa tão terrível como estes livros [as obras de Fritz Fanon, Edward Said e Walter Rodney] afirmam, então os lugares anteriormente colonizados deveriam ter ganho uma vigorosa vitalidade no momento em que os colonizadores fizeram as malas e se foram embora. Tal, porém, não aconteceu.5 6
Sem embargo do que se refere, existia um ressentimento nacionalista natural e compreensível dos povos colonizados, sobretudo se a repressão contra esses movimentos foi exercida manu militarii. Todavia, é preciso tomar boa nota que “o ressentimento nacionalista contra o domínio colonial foi muitas vezes cristalizado e exacerbado por acontecimentos específicos, que suscitaram indignação e que, com razão ou sem ela, foram vistos como sintomas de um mal-estar constitucional mais profundo. Mas o ressentimento cristalizado e exacerbado foi buscar o seu material a correntes intelectuais e emocionais mais profundas. Uma delas era, por vezes, a filosofia política ocidental.”7 Aliás, bem ilustrada pelos autores atrás mencionados.
Muitos historiadores concorrem, hoje, como aliás Gilley, entre outros, grosso modo, na afirmação de Biggar:
“Descrever o governo colonial britânico de uma forma simplista como geralmente opressivo e explorador, como é habitualmente feito, pode satisfazer certos preconceitos ideológicos, mas obscurece a complicada verdade histórica. O domínio colonial não teria sido possível sem a aquiescência, a participação e a cooperação generalizadas dos povos nativos.”
Podendo-se, pois, concluir que “o domínio colonial não podia sobreviver – como nunca poderia ter sobrevivido – sem a cooperação generalizada dos nativos.”8 Isto é aplicável mutatis mutandis às demais situações coloniais e não apenas à britânica.
Em suma e em minha opinião, o colonialismo não se caracterizava por ser essencialmente explorador, nem particularmente violento. As excepções confirmam a regra. O sistema foi sempre moderado pelo humanismo cristão, nuns casos mais evidente, do que noutros. Creio que no caso português isso parece ser suficientemente claro. Acrescentaria que a miscigenação racial no nosso império colonial foi um fenómeno expressivo, revestido de alguma complexidade, mas variável de região para região, de época para época, e de intensidade oscilante. Nalguns casos, a miscigenação foi incentivada e, de certo modo, a norma: casos do Brasil, Goa, Cabo Verde, S. Tomé e Angola, noutros não. Daí a formação de novos grupos étnicos e culturais: mestiços e crioulos.
Pode-se dizer que a legitimidade do colonialismo não foi posta em causa, excepto nas décadas de 50 e 60 (isto, no que concerne África e grande parte da Ásia). Genericamente falando, foi considerado como o melhor regime possível e como tal aceite pelos colonizados.
Na óptica do pós-colonialismo, em inúmeros casos, sobem ao Poder governos vulneráveis e ineptos, dando lugar a déspotas, ao colapso económico e à corrupção, que têm lugar em estados débeis e disfuncionais. Mais. Para além do que fica dito, é preciso não esquecer, no passado a curto e médio prazos e no presente, os genocídios levados a cabo em Zanzibar, no Camboja, Bangla Desh e Rwanda, bem como as guerras civis endémicas que assolaram quase toda a África Ocidental (Libéria, Serra Leoa, Guiné-Bissau, Costa do Marfim, Mali, Burkina Faso, entre outros) e também na África Central, Oriental e Austral (Angola, Moçambique, Somália, Sudão, República Democrática da Congo, República Centro Africana ). A lista está longe de ser exaustiva.
FRANCISCO HENRIQUES DA SILVA
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1 Gilley, Bruce – The Case for Colonialism, New English Review Press, p. 12. De salientar que o autor publicou sob o mesno título um artigo, revisto pelos seus pares, no Third World Quartely em 2017, mas teve de o retirar devido aos protestos dos corpos docente e discente da Portland State University, onde lecionava., tendo sido alvo de ataques pessoais e, inclusive, ameaças de morte. Só 6 anos mais tarde conseguiu desenvolver o artigo e publicá-lo em livro.
2 Biggar, Nigel, Colonialism a Moral Reckoning, William Collins, London, 2023, p. 96
3 Gilley, p. 40
4 Biggar, op. cit. p. 95
5 O caso da Guiné-Bissau é a este respeito paradigmático, como refere Gilley: “Em 2015, o guineense médio vivia apenas até aos cinquenta e cinco anos, o que significa ganhos de apenas 0,3 anos de vida extra por ano desde a independência, menos de metade dos 0,73 anos de vida extra por ano ganhos no final do período colonial. O que poderia ter sido uma Macau ou Goa de África próspera e humana é hoje uma fossa de sofrimento humano. Os académicos anticoloniais ocidentais e africanos continuam a exaltar as ideias de “libertação nacional” de Cabral. Mas os guineenses existentes podem estar a perguntar-se: quando é que os portugueses voltam?” vd. The Case for Colonialism – National Association of Scholars
6 Gilley, op. cit., p.22
7 Biggar, op.cit., p. 205
8 Ibid, p. 281
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Francisco Henriques da Silva é licenciado em História, diplomata e autor. Foi Director-geral de Assuntos Multilaterais no MNE e embaixador na Guiné-Bissau, Costa do Marfim, Índia, México e Hungria
As opiniões do autor não reflectem necessariamente a posição do ContraCultura.
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