Recentemente me vali desta obra, do grande Johann Sebastian Bach, como pano de fundo de um desajeitado voo poético e introspectivo, no qual também usei mares e navegações tormentosas a título de analogias com os últimos acontecimentos, em minha vida.
Talvez alguns recém-chegados não tenham entendido as razões do uso desta peça primorosa – certamente alguns acharam mesmo algo próximo a uma blasfêmia contra Bach – em meus queixumes, e por isso achei de bom tom oferecer algumas explicações.
Imaginei traçar algum paralelo entre os tempestuosos mares navegados por mim, nos últimos anos, e as reais borrascas enfrentadas pelos marinheiros – quase suicidas – de um ou dois séculos atrás; pode não ser justo mas soou-me poético. Do mesmo modo, emparelhei as batalhas navais com as devastadoras guerras pessoais e emocionais que travei, as quais custaram-me um número absurdo de baixas – a totalidade, para ser franco – e que redundaram no trágico “naufrágio” por mim vivido, nos últimos anos.
Completando, sendo eu alguém visceralmente “persona non grata” em quaisquer redações do país e já velho demais para outros trabalhos braçais – diante dos quais jamais me intimidei no passado – vejo-me hoje sem rumo, sem bússola, sem sextante, à deriva.
Isso posto, é hora do paciente leitor entender minha visão desta grande obra de Bach:
Trata-se de uma peça icônica do repertório do violoncelo solo, carregando um significado que transcende a mera técnica musical. Seu Prelúdio, talvez o movimento mais reconhecido, é uma meditação sonora pura, fluida, que há de evocar ao ouvinte tanto a complacente serenidade quanto uma grandiosa sensação de descoberta.
Bach construiu a obra com uma estrutura clara, baseada na dança, mas carregada de emoção e profundidade filosófica. Há uma sensação de ordem e, ao mesmo tempo, de improvisação controlada, como se fosse um monólogo interior. Ela tem um caráter luminoso e acolhedor, não busca assombrar com virtuosismo mas, isto sim, tocar algo essencial na alma humana. O Prelúdio, com sua progressão quase hipnótica, parece uma reflexão sobre o próprio fluxo do tempo – e o passar das horas, meu leitor haverá de saber, tem um peso significativo para mim.
Sua melodia ressoa profundamente porque é direta e acessível, mas nunca banal. Seu significado se molda ao ouvinte: pode ser contemplativa, melancólica, esperançosa ou solene; não é apenas um desafio à sensibilidade, mas também uma experiência espiritual, de maturidade cognitiva.
Mas, dirá o leitor, a explicação ainda parece vaga e sem apontar diretamente a algo compreensível para aqueles que não estão sob sua pele – e por isso é preciso situá-la em um contexto mais inteligível: alguém lembra do excelente filme “Mestre dos Mares – O Lado Mais Distante do Mundo”?
Pois bem: a Suíte para Violoncelo Nº 1 de Bach faz parte da banda sonora deste filme “Master and Commander: The Far Side of the World” (título original, 2003), enfatizando as tensões entre a guerra e a paz.
Os produtores do filme escolheram o Prelúdio da Suíte Nº 1 não apenas por questões estéticas mas, tal como os imitei, simbólicas:
– Refúgio da Guerra: A melodia fluida e introspectiva de Bach contrasta com o caos das batalhas navais. Representa um espaço de ordem, beleza e civilidade dentro do ambiente brutal da guerra.
– Profundidade dos Personagens: O filme estabelece Aubrey e Maturin como homens de cultura, apaixonados por música e ciência. Essa escolha reforça sua humanidade e seu vínculo intelectual.
– Tradição e Hierarquia: A música de Bach evoca um mundo de disciplina e estrutura, refletindo tanto a ordem militar da Marinha Real Britânica quanto a organização rígida da sociedade do século XIX.
– Oposição ao Destino: Em meio à incerteza da guerra, Bach sugere uma ordem maior, um eco de uma harmonia universal que os personagens tentam agarrar antes de serem arrastados de volta à realidade do conflito.
Assim, a Suíte para Violoncelo Nº 1 em “Master and Commander” funciona como um momento de respiro filosófico, um contraponto ao peso da guerra e uma lembrança de que, mesmo em meio ao caos, a beleza e a razão ainda têm seu lugar – diferentemente de meu devaneio poético, cujo teor dramático situa-se bem mais ao rés do chão e não produz nenhuma consequência ao mundo.
Ainda assim, ao protagonista da miséria reserva-se o compreensível direito de crer-se em meio a uma hecatombe apocalíptica global, e esta pretensão foi o principal motor de minha patética analogia musical.
De qualquer modo e para salvaguardar algum resquício de dignidade, creio poder afirmar ao menos vaga semelhança de alguns aspectos retratados pelo filme e minha existência – e apenas não invoco o testemunho de amigos e familiares porque os mesmos, infelizmente, são a totalidade das baixas na tripulação de minha vida.
Mas valeu a intenção e agradeço a paciência.
WALTER BIANCARDINE
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Walter Biancardine foi aluno de Olavo de Carvalho, é analista político, jornalista (Diário Cabofriense, Rede Lagos TV, Rádio Ondas Fm) e blogger; foi funcionário da OEA – Organização dos Estados Americanos.
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