Era uma questão de tempo até este assunto rebentar. E rebentou até antes de Trump tomar posse.

O magnata da tecnologia Elon Musk e o empreendedor Vivek Ramaswamy provocaram um acalorado debate online sobre o controverso programa do visto H-1B, colocando-os em desacordo com as bases do movimento MAGA que consideram a imigração legal e qualificada como uma ameaça aos trabalhadores americanos.

O visto H-1B permite que empregadores dos EUA contratem trabalhadores estrangeiros em ocupações especializadas que exigem conhecimentos técnicos específicos e um diploma de bacharel ou superior. Essas ocupações geralmente incluem áreas profissionais como IT, engenharia, matemática e medicina.

A 30 de Setembro de 2019, o Serviço de Cidadania e Imigração dos EUA (USCIS) estimou que aproximadamente 583.420 indivíduos estavam autorizados a trabalhar nos Estados Unidos sob a classificação de visto H-1B.

A cada ano fiscal, há um limite imposto pelo Congresso de 65.000 vistos H-1B, com 20.000 vistos adicionais disponíveis para indivíduos com mestrado ou superior de uma instituição académica dos EUA, totalizando 85.000 novos vistos H-1B anualmente.

No dia de Natal, Elon Musk e Vivek Ramaswamy, que em breve chefiarão o Departamento de Eficiência Governamental (DOGE) do presidente eleito Donald Trump, entraram em conflito com o movimento MAGA sobre o controverso programa de vistos H-1B e imigração.

A controvérsia surgiu depois que o empresário Mario Nawfal destacou uma escassez crítica de talentos em engenharia nos Estados Unidos, citando uma procura crescente por especialistas em IA e uma necessidade projetcada de 160.000 engenheiros na indústria de semicondutores até 2032.

Musk respondeu com um post agora viral, argumentando que os EUA precisam do “dobro” do número actual de engenheiros, lamentando uma

“terrível escassez de profissionais americanos extremamente talentosos e motivados”.

Musk comparou a necessidade da América de imigrantes altamente qualificados a equipas de desportos profissionais que recrutam os melhores jogadores de todo o mundo, acrescentando:

“O número de pessoas que são engenheiros supertalentosos e supermotivados nos EUA é muito baixo. Pensa nisto como uma equipa de desporto profissional: se queres que a tua equipa ganhe o campeonato, precisas de recrutar os melhores talentos onde quer que eles estejam. Isso permite que toda a equipa vença.”

 

 

Um utilizador respondeu ao comentário de Musk, dizendo:

“Há mais de 330 milhões de pessoas na América. Certamente que deve haver entre eles os suficientes para montar uma equipa definitiva. Por que negarias essa oportunidade aos verdadeiros americanos trazendo estrangeiros para cá?”

Musk insistiu na sua linha de raciocínio, afirmando:

“O teu entendimento da situação está virado ao contrário. É CLARO que nas minhas empresas preferimos contratar americanos, pois isso é MUITO mais fácil do que passar pelo processo incrivelmente doloroso e lento de visto de trabalho.No entanto, há uma escassez terrível de engenheiros extremamente talentosos e motivados na América. Não se trata de distribuir oportunidades saídas da cartola. Isto é extremamente óbvio quando olhamos para as equipas da NBA, pois as diferenças físicas são claras No entanto, as diferenças MENTAIS entre os humanos são MUITO maiores do que as diferenças físicas!!”

 

 

Musk acrescentou ainda num outro post:

“Tudo se resume a isto: Queres que a América GANHE ou queres que a América PERCA. Se forçares os melhores talentos do mundo a jogar pelo outro lado, a América PERDERÁ. Fim da história.”

Após enfrentar a reacção negativa por seu comentário, Musk ofereceu esclarecimentos noutra publicação.

“Talvez este seja um esclarecimento útil: estou a referir-me a trazer por meio da imigração legal os ~0,1% melhores talentos de engenharia como sendo essencial para a América continuar a vencer. Isto é como trazer os Jokic’s ou Wemby’s do mundo para ajudar a sua equipa (que é composta principalmente por americanos!) a vencer a NBA. Pensar na América como uma equipa desportiva profissional que vem vencendo há muito tempo e quer continuar a vencer é a construção mental correcta.”

 

 

As observações de Musk foram por si só controversas e podem ser facilmente desmontadas (já lá iremos), mas Vivek Ramaswamy, o seu parceiro no futuro Departamento de Eficiência (DOGE) do executivo de Donald Trump levou as coisas um passo além.

Numa longa publicação no X, Ramaswamy argumentou que a cultura dos EUA deu prioridade à “mediocridade em vez de excelência” durante décadas, sugerindo que a falta de ambição dos americanos é responsável pela lacuna de talentos.

Ramaswamy escreveu:

“A razão pela qual as principais empresas de tecnologia frequentemente contratam engenheiros estrangeiros de primeira geração em vez de americanos ‘nativos’ não é por causa de um déficit inato de QI dos americanos (uma explicação preguiçosa e errada). Uma parte fundamental disto resume-se à palavra C: cultura. Perguntas difíceis exigem respostas difíceis e se realmente queremos resolver o problema, temos que confrontar a VERDADE:

A nossa cultura americana venera a mediocridade em vez da excelência há muito tempo (pelo menos desde os anos 90 e provavelmente mais). Isso não começa na faculdade, começa na juventude.

Uma cultura que celebra a rainha do baile em vez do campeão da olimpíada de matemática, ou o atleta em vez do orador da turma, não produzirá os melhores engenheiros.

Uma cultura que venera Cory de ‘Boy Meets World’, ou Zach & Slater em vez de Screech em ‘Saved by the Bell’, ou ‘Stefan’ em vez de Steve Urkel em ‘Family Matters’, não produzirá os melhores engenheiros.

(Facto: conheço *vários* conjuntos de pais imigrantes nos anos 90 que limitaram activamente o quanto os seus filhos podiam assistir a esses programas de TV precisamente porque eles promoviam a mediocridade… e os seus filhos tornaram-se graduados de grande sucesso).

Mais filmes como Whiplash, menos reprises de ‘Friends’. Mais aulas de matemática, menos festas do pijama. Mais competições científicas de fim de semana, menos desenhos animados nas manhãs de sábado. Mais livros, menos TV. Mais criação, menos “relaxamento”. Mais actividades extracurriculares, menos ‘passeios no shopping’.

A maioria dos pais americanos normais olha com ceticismo para ‘esses tipos de pais’. Mais crianças americanas normais veem ‘esses tipos de crianças’ com desprezo. Se cresceres aspirando à normalidade, a normalidade é o que irás alcançar.

Agora fecha os olhos e visualiza que famílias conheces nos anos 90 (ou mesmo agora) que criaram os seus filhos de acordo com um modelo em vez de outro. Sê brutalmente honesto.

‘Normalidade’ não é suficiente num mercado global hipercompetitivo de talentos técnicos. E se fingirmos que sim, a China vai bater-nos.

Este pode ser o nosso momento Sputnik. Já acordámos do sono antes e podemos fazer isso de novo. A eleição de Trump, espero, marca o início de uma nova era de ouro na América, mas somente se a nossa cultura acordar completamente. Uma cultura que mais uma vez dê prioridade à realização em vez da normalidade; à excelência em vez da mediocridade; à genialidade em vez da conformidade; as trabalho duro em vez de preguiça.

Esse é o trabalho que temos para nós, em vez de chafurdar na vitimização e apenas desejar (ou legislar) práticas alternativas de contratação. Estou confiante de que podemos fazer isso.”

 

 

O post de Ramaswamy provocou reacções mistas entre os conservadores, com alguns expressando indignação, particularmente aqueles que há muito criticam os vistos H-1B como um meio de importar mão de obra barata às custas dos trabalhadores americanos.

 


 

Num outro post, Ramaswamy acrescentou:

“Há muito tempo digo que o actual sistema H-1B está quebrado e precisa de ser destruído. Não deveria usar uma lotaria, deveria ser baseado em puro MÉRITO. E não deveria prender os trabalhadores a apenas uma corporação. Os mesmos princípios que defendo hoje.”

 

 

Os críticos argumentam que o programa, destinado a preencher a escassez de mão de obra em campos especializados, foi explorado por alguns empregadores para cortar custos. Foram relatados casos em que funcionários americanos foram demitidos e substituídos por trabalhadores H-1B.

De acordo com o Economic Policy Institute, durante o ciclo de despedimentos das tecnológicas em 2022, as empresas demitiram milhares de americanos da sua força de trabalho nos EUA enquanto continuavam a trazer mais trabalhadores H-1B. Os 30 principais empregadores H-1B em 2022 demitiram pelo menos 85.000 trabalhadores, enquanto trouxeram 34.000 trabalhadores H-1B.

 

Comentário do Contra.

Este assunto tem tanto que se lhe diga que merecia um artigo à parte, mas é importante que o contexto supracitado conviva com a análise que propomos.

Os Estados Unidos da América ascenderam no século XX a primeira potência mundial graças ao talento, à determinação, ao engenho e à ética profissional dos… americanos. E também a modelos de governação pública assentes em princípios filosóficos e constitucionais que premiavam a livre iniciativa, o mérito individual, o empreendedorismo privado e a formação técnica de excelência; atribuindo ao Estado um papel subsidiário, cujas prioridades seriam a da serventia dos interesses dos cidadãos e da sua prosperidade, sendo para esse efeito estruturalmente magro e fiscalmente conservador.

Não há qualquer razão para supor que, regressando a esses modelos de governação social, académica, económica e política, os americanos nativos não possam competir com sucesso nos mercados globais.

Por outro lado, e partindo do princípio que os imigrantes qualificados de que falam Vivek e Elon são oriundos principalmente da China, da Índia e da Coreia do Sul, convém lembrar que:

A Índia, é um país regido por castas, com muitos milhões de pessoas a viverem em condições de miséria que são difícies de imaginar no Ocidente, problemas estruturais profundos e aparentemente irresolúveis (materiais e imateriais), corrupção a rebentar com todas as escalas, indigência recordista e etc. Os modelos culturais, religiosos, políticos e económicos da Índia nada têm a ver com  aqueles que fizeram dos EUA a nação que é hoje, ou que foi até ao fim do Século XX (porque a que é hoje também não serve de exemplo edificante).

A China, é uma nação imperial de opulenta cultura e estruturação imaterial confuciana, que privilegia a imobilidade social, as lideranças autoritárias, o sacrifício do individual em função do colectivo e a indefectível obediência ao estado. Estes valores em que os imigrantes chineses são formados, chocam frontal e precisamente com os valores que elevaram os Estados Unidos à sua grandeza entre as nações.

A Coreia do Sul, que partilha com a China a fundação confuciana, vive num eterno conflito entre esse modelo ancestral e a ocidentalização a que foi submetida nos últimos 70 anos. Os coreanos têm de facto uma ética profissional absolutamente imbatível, ao ponto de serem hoje dos povos mais infelizes à superfície da Terra, de tal forma que praticamente desistiram de procriar.

Quanto mais indianos, chineses e coreanos os EUA importarem (ainda por cima para desempenharem funções de topo nas super-estruturas económicas e políticas), mais contradições culturais vão ter que resolver. Mais conflitos sociais e religiosos vão ter que sanar. Mais pressão para modelos alienígenas de regência social vão sofrer. Mais será periclitante a sua identidade como nação. Mais profundas serão as suas divisões internas. Mais polarizada será a sua vida política e económica.

O mercado de trabalho americano não precisa de mais imigrantes, legais ou ilegais, qualificados ou não. Precisa que as universidades abandonem a ideologia woke e aceitem e formem os nativos da mesma forma que aceitam e formam os imigrantes chineses ou indianos. E que a academia volte a ser um espaço de livre debate de ideias, de acesso democrático, e que respeite os valores que fundaram os EUA em vez de ser uma entidade que activamente os procura anular.

Os próprios argumentos de Musk e Ramaswamy são surpreendentemente frágeis e não resistem a um inquérito mais cuidado: Comparar uma nação a uma equipa de basquetebol é reduzir esta conversa à dialéctica de barbearia, mas ainda assim, é possível seguir a lógica para a destruir: quanto mais estrangeiros tem a NBA, menores são as suas audiências. E nem em todos os desportos é verdade que as melhores equipas são ‘galácticas’. Elon evitou a NFL, por exemplo, a liga de futebol Americano em que mais de 90% dos jogadores são… Americanos. No caso do (nosso) futebol, é possível argumentar que os efeitos da lei Bosman estão longe de serem positivos, cristalizando os clubes mais ricos como eternos candidatos aos títulos nacionais e internacionais, e condenando as equipas a um deficit de identidade e coneccção com os adeptos.

Além disso, é importante e significativo sublinhar as razões pelas quais Musk diz que prefere contratar americanos: apenas pelo facto de ser mais fácil, e não pela simples razão de serem americanos, a quem deve ser dada prioridade no contexto do mercado de trabalho… Americano.

E se quanto ao talento, não há, como já referimos, qualquer razão (que não seja puramente racista) para expectar que os asiáticos sejam mais dotados do que os brancos anglo-saxónicos ou os negros afro-americanos (não interessa porque o tom da pele não interessa à conversa), a questão da motivação que o patrão da Tesla e Vivek Ramaswamy mencionam é também superficial. Se os americanos nativos não estão motivados há que os motivar. As pessoas não nascem desmotivadas. Nem têm que morrer desmotivadas. Cabe às empresas encontrarem soluções para as motivar. E não é com certeza com políticas woke de discriminação positiva em relação à raça e ao género que esse objectivo se concretiza.

Este destaque dado à motivação aponta porém para o cerne da questão, se bem que os dois bilionários o façam inadvertidamente: é muito mais fácil motivar um trabalhador qualificado indiano com um salário anual de 60.000 dólares do que motivar com o mesmo valor um técnico nativo. E esse é que é o objectivo último de Elon e Vivek: reduzir os custos da mão de obra para exponenciar os lucros.

Tudo o resto é conversa para cegar os cegos.

Como já tantas vezes referimos aqui no Contra, Elon Musk, como o Vivek Ramaswamy, como Donald Trump, nem sequer são conservadores. São liberais com uma costela nacionalista. No caso dos dois primeiros, bilionários do sector tecnológico, essa costela nacionalista tem mais a ver com uma ideia de poder do que com uma ideia de nação e podemos confiar neles como a rã pode confiar no escorpião.

O próprio Trump, que está astuciosamente a deixar que os seus dois soldados se queimem na frente de batalha que se trava entre a ala populista e o estabelecimento republicano, concorda em absoluto com a necessidade de recrutar mais imigrantes qualificados. Como o Contra noticiou em Junho deste ano, o Presidente Eleito manifestou abertura para legalizar todos os imigrantes licenciados pelas universidades dos EUA, uma convicção até mais radical do que aquela enunciada agora pelos seus subordinados.

E esta é uma guerra perdida pelos populistas americanos. Se é expectável que os números da imigração ilegal possam cair nos próximos 4 anos, a imigração legal vai aumentar. Porque quem manda tem mais força do que quem vota. Nos EUA e em toda a parte.