Ultimamente, tenho pensado no rumo que toma a cultura popular portuguesa. Em tempos a cultura foi mais lisboeta, mais beirã, minhota ou ribatejana. No século XIX espalharam-se componentes da portugalidade como as corridas de touros e no século XX generalizou-se o consumo do bacalhau. Hoje a cultura portuguesa lembra-me uma fotografia da Base das Lajes da década de 40, onde aparece um carro de bois açoriano e um avião americano a seu lado. Bicéfala em que cada cabeça é um meio de transporte e aquele que pesa mais todos sabemos qual é.
A evolução da cultura é uma contante gradual em qualquer existência humana. No entanto, nos últimos anos, com a ajuda da velocidade transatlântica das redes sociais, têm-se perdido valiosas memórias, costumes e tradições.
À chegada do Natal, estimo que 248 lojas em Lisboa estarão a passar a música popularizada por Frank Sinatra, Let it snow, isto numa cidade onde caiu neve duas vezes desde 1945. Não tenho números nem fontes que o comprovem, mas creio que não haverá grande discórdia se disser que cada vez mais vezes se cantam músicas de Natal do Michael Bublé, do que se cantam ou conhecem músicas como Eu hei de m´ir ao presépio. Se confrontado entre ouvir All I Want for Christmas is You ou Adeste Fidelis, irei com certeza escolher a opção que, não só é adequada à data, como me aproxima do modo como as gerações passadas viveram o Natal durante séculos.
Posso fazer estas suposições em total liberdade porque já passou o Hallowen e o Dia de Todos os Santos e a minha perceção (ou das vezes que tocou a minha campainha) é que poucas foram as crianças que foram ao pão por Deus e mais foram as que perguntaram a estúpida frase “doçura ou travessura?”. Falei com pessoas sobre levarem os filhos aos cemitérios a visitar os entes queridos no dia 1 de novembro e foi-me dito que um cemitério é uma realidade desagradável, lembra a morte e que pode ser de mau tom. Com certeza, de qualquer dos modos a criança ainda deve estar a descansar de correr a noite anterior toda vestida de morto-vivo atrás de um esqueleto.
Claro que nestes argumentos está implícita a dicotomia entre uma opção ou a outra, mas num contexto de misturas é importante saber as prioridades. Ouvi há dias uma conferência onde falava um padre, e onde uma mãe muito católica perguntava se era mau que a filha gostasse muito de Harry Potter e soubesse de cor os livros todos. O padre respondeu: “Depende… ela sabe os 10 mandamentos?”. Depois continuou a demonstrar que muitas coisas não têm nada de mal, que a sua importância está subjacente ao contexto que as envolve. Pois bem, do mesmo modo não é mau uma jovem saber as datas dos concertos da Taylor Swift, mas é mau sabê-las e desconhecer o 10 de junho e o 1º de dezembro e respetiva importância e significados. Não é mau um jovem saber os episódios da série Stranger Things, desde que saiba os dois primeiros cantos dos Lusíadas. Não é mau uma criança saber os nomes de personagens de videojogos, mas é imperdoável não saber quem foi D. Afonso Henriques, D. Afonso de Albuquerque ou a Rainha Santa Isabel. Não é o fim do mundo uma criança saber quais são os hambúrgueres que gosta no McDonald´s (aliás poupa tempo a quem estiver atrás), desde que saiba o sabor de um cozido, feijoada à transmontana e de uma cabidela. Não é mau cantarem músicas que dizem Christmas, desde que saibam o significado das primeiras seis letras da palavra.
A isto, podia acrescentar a quantidade de jovens que já foram a Praga, Madrid, Paris e fizeram erasmus em Berlim mas nunca foram a Guimarães, Coimbra, Beja ou Bragança, ou como é mais importante fazer um inter-rail do que um intra-rail. Talvez isto aconteça numa tentativa de criar cidadãos do mundo, o que quer que isso seja. Se somos de todo o lado não somos de lado nenhum, se queremos ser tudo, não somos nada verdadeiramente.
Tenho pena que só cantemos o Hino Nacional se uma bola estiver a rolar, que só nos lembremos da nossa história a ouvir Conquistador dos Da Vinci e que só pensemos no Padrão dos Descobrimentos ou na Torre de Belém quando um chinês de auriculares e máquina fotográfica na mão nos pede as direções.
Para concluir, volto à quadra natalícia. Não, não vou tocar no tema árvore de Natal versus presépio, mas sim dizer que fico com a esperança de que no dia 6 de janeiro se fale nos reis magos, nem que seja porque vieram do Oriente e hoje é inclusivo e diverso falar neles.
DUARTE ABREU LOUREIRO
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As opiniões do autor não reflectem necessariamente a posição do ContraCultura.
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