“Mas, ao ouvir e decidir os casos, mostrava uma estranha inconsistência de temperamento, pois ora era cuidadoso e perspicaz, ora apressado e irreflectido, ora tolo e como um louco.”
Suetónio . Os Doze Césares
Ano 41 d.C. O brutal e insano imperador Calígula acaba de ser apunhalado até à morte em público, tendo a sua mulher e filha sido chacinadas ao mesmo tempo. São muito poucos os membros sobreviventes da família Júlio-Claudiana que poderiam substituí-lo; a maioria foi eliminada pelos dois imperadores anteriores. Há, no entanto, uma excepção notável: o tio Cláudio, de cinquenta anos, gago e fisicamente deformado. Considerado um imbecil e, portanto, inelegível para um alto cargo, ele está, de facto, muito longe de ser estúpido. Além disso, de momento, não se encontra em lado nenhum. Mais tarde, nesse mesmo dia, um Cláudio aterrorizado seria descoberto, encolhido de pânico, atrás de uma cortina, nas profundezas do palácio imperial. Quando um soldado anónimo abriu essa cortina fatídica, o Cláudio revelado esperava que os seus últimos momentos tivessem chegado, que os assassinos pretendessem acabar com a dinastia de Augusto na sua totalidade, de uma vez por todas. Mas não é isso que acontece. Num daqueles momentos imprevistos de que a História está repleta, a Guarda Pretoriana estava desesperadamente à procura de um sucessor legítimo, fosse ele quem fosse, e ao fechar do dia Cláudio é proclamado imperador, tendo o senado sido forçado a reconhecer retroactivamente essa decisão. Mais um prego, se não o definitivo, no caixão da República. A monarquia tinha sido salva da destruição, por agora. Mas quanto tempo iria durar, e que tipo de governo poderia o mundo romano esperar de um aparentemente retardado Cláudio?
Tiberius Claudius Caesar Augustus Germanicus-Claudius não era, de facto, nenhum atrasado mental. Longe disso, era um estudioso. Era um historiador e um jurista de sucesso. Era extremamente culto, sendo o primeiro imperador a poder reivindicar tal distinção. E, embora fosse menos cruel do que Tibério, e muito menos do que Calígula, estava longe de ser benévolo. Autores como Robert Graves e obras como “Eu, Cláudio”, cuja adaptação para televisão ilustra este texto ( e cujo consumo, de qualquer forma, o Contra recomenda vivamente), optaram por retratar Cláudio como um imperador simpático, rodeado de monstros. Na célebre série, Cláudio é genialmente interpretado por Sir Derek Jacobi, e é totalmente convincente como um avô cativante e adorável. O problema é que as fontes antigas, com destaque para Suetónio, não apoiam esta versão do complexo personagem.
Cláudio parece ter demonstrado um conjunto estranho e eclético de qualidades. Não se encaixa perfeitamente num único arquétipo. Por vezes, era dolorosamente comedido e justo, noutras, podia ser cruel e desnecessariamente violento. Nesta dualidade de carácter saia nitidamente ao avô.
A escrita de Graves e a actuação de Jacobi são tão convincentes que, até hoje, temos que combater activamente esse legado para chegar à verdade dos crimes e loucuras de Cláudio, e evitar pensar nele como um avô bondoso.
Quanto às fontes clássicas, os primeiros anos do reinado de Cláudio descritos por Tácito perderam-se, infelizmente. É uma pena. Mas temos os últimos anos do seu reinado. Temos o relato de Suetónio (que é o documento fundamental desta série de artigos sobre os imperadores romanos), temos o testemunho de Cássio Dio, temos as cartas de Plínio, e temos várias outras evidências literárias; temos até um punhado de transcrições parciais dos discursos de Cláudio que milagrosamente sobreviveram aos milénios. Temos, portanto, uma quantidade razoável de provas com que trabalhar. O próprio Cláudio deve ter publicado muitos volumes de texto durante a sua vida – histórias e biografias, principalmente – todos eles agora, completamente perdidos para nós.
Tácito e todas as fontes antigas parecem estar mais ou menos de acordo sobre o facto de Cláudio ser tímido por natureza. A sua cautela e timidez, aparentemente produtos de paranoia, são mencionadas e sublinhadas vezes sem conta. A paranoia seria justificada: o perigo de ser usurpado ou assassinado era factual. Se, por vezes, foi cruel e arbitrário, foi por receio de que a sua vida pudesse ser extinta a qualquer momento. E, de facto, houve muitas conspirações contra o seu regime; conspirações que foram enfrentadas e contrariadas por uma vasta rede de informadores, acções de censura e ordens de repressão generalizadas, perpetradas por uma impiedosa ala militar estacionada em Roma, pronta a esmagar toda a oposição percebida. Embora o terror particular de Cláudio nunca se tenha transformado em algo absolutamente dantesco, não deixa de ser uma mancha na sua memória histórica.
Suetónio relata assim a veia homicida do imperador gago:
“Mandou matar Ápio Silano, seu sogro, e as duas júlias, uma filha de Durso, outra filha de Germânico, a pretexto de vagas acusações e sem lhes conceder meios de defesa. Do mesmo modo procedeu para com Cneio Pompeu, casado com a sua filha mais velha, e para com Lúcio Silano, noivo da mais nova. Pompeu foi degolado nos braços de um jovem a quem estremecia, Silano recebeu ordem de despojar-se da pretura, quatro dias antes das calendas de Janeiro, suicidando-se no começo do ano, e no mesmo dia em que se celebravam as bodas de Cláudio e Agripina. Assinou também a sentença de morte de 35 senadores e de mais de trezentos cavaleiros romanos; e fê-lo com tanta ligeireza que, a um centurião, encarregado de matar um consular, que se lhe apresentava para lhe dizer que estavam cumpridas as suas ordens, respondeu que não dera ordem nenhuma.”
E se assim procedia com familiares, aristocratas e senadores, imagine-se a prodigalidade assassina que dedicaria à plebe, que os historiadores clássicos nem se dão ao trabalho de mencionar.
A par de uma série de sucessos notáveis durante o seu reinado – reformas económicas e judiciais, o reforço das fronteiras germânicas e a conquista do sul da Grã-Bretanha -, pode dizer-se que a principal fraqueza de Cláudio foram as mulheres da sua vida. Mais exactamente, as suas duas últimas esposas. A penúltima mulher de Cláudio César foi Messalina, que ficou para a história como uma senhora de moral deveras duvidosa. De facto, a acreditar nos relatos, ela parece ter sido altamente promiscua. Absurdamente promiscua. Quase comicamente promiscua. O nível e o grau da sua depravação sexual e dos seus excessos são tão extremos que até o próprio Tácito sente a necessidade de interromper a sua narrativa para assegurar ao leitor que está ciente de que os pormenores são parcimoniosos, por força do pudor. Tácito diz-nos que, se não tivesse feito pessoalmente a investigação e falado com sobreviventes e testemunhas oculares, ele próprio poderia não ter acreditado. Messalina tinha um apetite sexual insaciável. É suposto ter-se deitado com todo e qualquer homem que lhe apetecesse. Supõe-se que se escapulia regularmente do palácio imperial quando Cláudio adormecia, dirigia-se a um bordel conhecido e, prontamente, entregava o corpo a toda a gente. Supostamente, ela conduziu uma competição com a prostituta mais prolífica de Roma para ver quem dormia com mais clientes num só dia: Messalina ganhou o concurso.
Messalina provou ser uma dor de cabeça para Cláudio e Roma muito para além da sua promiscuidade. Manobrou e manipulou Cláudio cuidadosamente, de modo a convencê-lo a exilar e executar muitos dos seus familiares. No final, parece que se cansou de ter de manipular um imperador envelhecido, e alimentou o projecto de usurpar a própria autoridade imperial. Assim, um dia, quando Cláudio estava a visitar a costa de Óstia, Messalina casou com o seu pretendente favorito, Gaio Sílio, e aparentemente tencionava depor Cláudio e instalar-se a si e ao seu amante como os novos senhores de Roma.
Por muito desesperado e louco que pareça este esquema, por muito arriscado que nos pareça agora, Messalina e a sua facção devem ter pensado que tinham pelo menos uma hipótese de sucesso. O plano revelou-se catastrófico. Os libertos mais poderosos de Cláudio, em especial Narciso, impediram a sua concretização. A Guarda Pretoriana encarregou-se de reunir os conspiradores e de os eliminar sem demora; Messalina e Sílio foram degolados por centuriões.
Aparentemente, Cláudio nunca recuperou verdadeiramente da humilhação e do choque. Permitiu que a sua mulher fosse morta, deserdou efectivamente o seu filho, Britânico, e nunca mais falou de todo este sórdido caso. Os historiadores antigos e modernos afirmam que, a partir desta altura, o idoso Cláudio passou a interessar-se cada vez menos pelos assuntos de Estado e pela gestão do império. A sua vontade de continuar a luta parece ter sofrido um rude golpe nesta altura da sua vida, do qual nunca recuperaria.
No entanto, ainda faltavam cerca de seis anos para o fim do seu reinado, e o voraz Cláudio decidiu que precisava de mais uma esposa. Estranhamente, porém, decidiu casar-se talvez com uma das mulheres menos adequadas que poderia ter encontrado. Após a deposição e morte de Messalina, Cláudio casou-se com a sua própria sobrinha, Júlia Agripina, conhecida na história como Agripina, a Jovem.
Talvez fosse razoável supor que, na altura, Cláudio, com sessenta anos de idade, tivesse gostado de desfrutar de alguns dos seus anos de crepúsculo sem ser incomodado por mais uma consorte cruel e ambiciosa. Não teria ele tido uma barriga cheia de damas imperiais impiedosas e enganadoras, que lhe causaram estragos e miséria na vida? Aparentemente, não. Agripina, a Jovem – a mãe do imperador seguinte, Nero – foi, sem dúvida, a mais maníaca e monstruosa de todas as mulheres Júlio-Claudianas. Introduziu um reinado de opressão e assassinatos políticos que não se via desde as proscrições de Augusto. As suas estranhas e terríveis maquinações parecem ter quebrado o que restava da vontade de Cláudio. Ele basicamente permitiu que Agripina vestisse as calças, tanto na sua relação como em termos das suas respectivas posições dentro do Estado.
A forma como Cláudio encontrou o seu fim está envolta numa fina camada de incerteza. Embora a maioria das fontes antigas seja relutante em atribuir explícita e definitivamente a Agripina uma pontada de culpa assassina, quase todas concordam que a preponderância de provas sugere que ela o envenenou de facto. Cogumelos envenenados são normalmente evocados. Tácito sugere que Cláudio poderia estar a contemplar uma reabilitação para o seu próprio filho Britânico, afastando assim Nero. Talvez tenha sido isso que forçou a mão de Agripina. Não sabemos ao certo.
Os historiadores colocam frequentemente a questão: porque é que Cláudio casaria com uma víbora tão perigosa como Agripina, a Jovem? Porque é que preferiu o filho dela, Nero, ao seu próprio filho, Britânico? Por que razão se terá deixado envenenar, se suspeitava de tudo e de todos? Estes são pontos de interrogação válidos. Robert Graves responde a todas estas questões, descrevendo Cláudio como completamente exausto e cansado do pesado manto do poder. Cláudio sabia, de alguma forma, que a política romana era intrinsecamente vil ou que, pelo menos, tinha sido degradada e pervertida pela monarquia Júlio-Claudiana e, por isso, como uma espécie de vingança, como uma última e póstuma punição a toda a política romana, permitiria que bestas como Nero e a sua mãe mantivessem as rédeas do poder. Graves tipifica este ponto de vista ao fazer com que a sua personagem diga que deseja “deixar sair todo o veneno que se esconde na lama”. Embora esta seja uma ideia bastante poética – e um dispositivo literário soberbo – não se sustenta sob qualquer análise. Por isso, a memória de Cláudio César mantém, até hoje, um tom de ambiguidade intrigante e fascinante.
Mas uma coisa é certa: Embora nem se importasse muito que o tomassem por parvo, Cláudio não era de todo tão tolo como parecia.
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Mais biografias dos primeiros césares no ContraCultura.
Biografia de Minuto e Meio do historiador Suetónio.
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