Os populistas americanos estão em polvorosa. Conduzidos cegamente por um fenómeno imparável de wishful thinking, comentadores e comissários, políticos e populares prometem milagres e quimeras, jurando a pés juntos que a administração Trump, quando tomar posse, vai tranformar este lado da galáxia num festim de vinganças, numa orgia de revelações bombásticas e, não paradoxalmente, numa vasta região de paz, justiça e prosperidade.
Creditanto os mais entusiastas, a futura administração vai revelar a lista dos associados de Epstein e os ficheiros confidenciais relativos ao assassinato de Kennedy. Vai prender os procuradores que perseguiram judicialmente o magnata de Queens e os seus mais fiéis colaboradores. Vai libertar os presos políticos do 6 de Janeiro, extinguir o ‘Estado Profundo’ e cortar as pernas à CIA e ao FBI. Vai estancar a substituição demográfica via fronteira com o México, proibir as horas do conto ministradas por drag queens e interditar os tampões nas casas de banho dos rapazes, nas escolas dos estados azuis. Vai fazer a paz no Médio Oriente e na Ucrânia e em todos os lados do mundo em que as pessoas estejam zangadas umas com as outras. Vai tirar o flúor à água canalizada, as calorias à carne picada e os lucros às farmacêuticas. Vai denunciar os crimes da pandemia e tornar públicos os números da mortandade decorrentes das vacinas Covid. Vai revitalizar a economia, subtrair o volume da dívida, emagrecer o governo federal, baixar os impostos, exterminar a inflacção e devolver aos EUA o seu lugar primeiro no seio das nações. Os pobres deixarão de ser destituídos, os ricos serão ainda mais abastados e a classe média vai voltar a sonhar com moradias e cadillacs. Ou seja, Donald Trump vai reconduzir a América aos anos 50. Basicamente.
Este delirante entendimento do segundo mandato de Trump como a segunda vinda de Cristo, que vai dar visão aos cegos, movimento aos paralíticos, saúde aos leprosos e redenção aos pecadores, para além de infantil, é perigoso.
É perigoso, em primeiro lugar, para o próprio Trump. Quanto mais os conservadores proclamarem vinganças e anunciarem revoluções, mais excitado e enlouquecido vai ficar o estabelecimento das catacumbas de Washington. Mais capaz de loucuras será. Não há ratazana tão feroz como aquela a quem foi retirada a hipótese de sobreviver.
É perigoso também para a própria federação, que depois de ser dividida entre heróis e vilões pelos democratas vai ser dividida entre anjos e demónios pelos republicanos, até que o fosso seja excessivamente profundo para ser colmatado.
É perigoso ainda porque corre o risco de acabar por defraudar – e rapidamente – o massivo apoio popular com que Trump vai iniciar o seu mandato.
E voltando à infantilidade: é espantoso como até pessoas sensatas e geralmente assertivas como Neil Oliver, esperam sinceramente que Trump desvende a verdade sobre todo o sinistro processo da vacinação Covid, quando foi precisamente ele que o iniciou.
É espantoso que as mais lúcidas mentes populistas abram garrafas de champanhe na expectativa de que o Presidente Eleito seja capaz de serenar os ânimos no Médio Oriente, dada a influência sionista na sua campanha, ou reduzir a dívida soberana americana, que no primeiro mandato ajudou a ensandecer.
É espantoso que, apesar até das declarações do próprio em favor da imigração, alguém acredite que Trump vai parar o processo transformação étnica em curso nos EUA. As pessoas aqui confundem, parvamente, imigração ilegal com substituição demográfica. A última é perfeitamente possível sem a primeira.
E quanto ao regresso da federação ao seu domínio imperial, essa guerra já está perdida. É tarde para chegar cedo.
Donald Trump poderá resolver certos problemas, sem dúvida. Dará à economia americana um novo impulso, sim; devolverá à federação o seu estatuto de primeiro produtor energético, sim; levantará um muro na fronteira a sul do país, provavelmente. Poderá até ser bem sucedido num processo de paz na Ucrânia, se não exigir a Putin algo que o presidente russo não lhe queira dar. Será também possível que perdoe os condenados do 6 de Janeiro, mas dificilmente os perdoará a todos. É ainda legítimo supor que, dando devidos poderes a Robert F. Kennedy e a Elon Musk, desenvolva algumas, tímidas, reformas do governo federal.
É certo, também, que o presidente eleito está já a dar sinais positivos, como este:
E este:
E este ainda:
🇺🇸🏳️⚧️ President-elect Trump to introduce day-one bill recognizing only male and female genders, banning men from women’s sports.
“We will promote positive education about the nuclear family, the roles of mothers and fathers, and celebrating rather than erasing the things that… pic.twitter.com/GhNDtr4L6x
— BRICS News (@BRICSinfo) November 9, 2024
Mas convém tirar o pé do acelerador onírico e ser realista. Não há nada que o Presidente Eleito possa fazer em relação a este facto estatístico: Há nos EUA cerca de 70 milhões de retardados que votaram Kamala Harris. E no campo institucional, Trump vai precisar do Congresso, por exemplo, mas as duas maiorias que os republicanos lá vão deter serão curtas e voláteis, já que tanto no Senado como na Câmara dos Representantes há muitos republicanos ainda que são tudo menos simpatizantes do movimento MAGA. E em 2026 há eleições intercalares. Para arrancar legislação reformista do Capitólio, a nova administração terá que agir rápido, antes que o ciclo eleitoral roube os escassos centímetros cúbicos de coragem política que circulam nos corredores da instituição.
Mas, se calhar, ainda bem que estes processos de reforma são de difícil negociação. Uma administração radical provocaria uma reacção radical. E fragmentados e fragilizados como agora se encontram, a última coisa que os Estados Unidos precisam neste momento é de trincheiras.
A não ser que a ideia seja precisamente essa.
Paulo Hasse Paixão
Publisher . ContraCultura
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