O que está a acontecer nos subúrbios de Lisboa não tem nada de original. Odair Moniz é o George Floyd da Cova da Moura – uma vítima do sistema e um caso paradigmático da violência policial, de raiz racista. E quem disser o contrário, é supremacista branco.
Acontece que não.
Com o devido respeito e considerando o luto dos seus familiares e amigos, Odair tinha um extenso cadastro criminal e as circunstâncias que levaram à sua morte não decorrem de racismo sistémico, mas dos seus próprios actos, de natureza recorrente. O registo criminal e essas trágicas ocorrências são públicas pelo que não vale a pena demorar o dedo na ferida.
O que vale a pena sublinhar é que este guião, já usado por diversas vezes por todo o Ocidente e com consequências devastadoras no tecido social, gerando, para além da destruição física de infra-estruturas, a divisão, a polarização e a dramatização de trincheiras, que de metafóricas podem rapidamente passar ao concreto, não leva a lado nenhum que seja menos que infernal.
E, o que é mais, a narrativa de vitimização daqueles que dificilmente podem ser qualificados como vítimas, se não deles próprios, acaba por prejudicar os cidadãos cujas vidas são de facto negligenciadas pelas máquinas do poder. Aqueles que cumprem abnegadamente empregos mal pagos e extenuantes, aqueles que dependem da disfunção quotidiana dos transportes públicos para se deslocarem dos subúrbios para os centros urbanos, aqueles que vivem em complexos habitacionais degradados, assolados pela droga e por conflitos étnicos e controlados por ‘empresários’ como Odair Moniz.
Se marginalizados já viviam, vão viver à margem acrescidamente, porque a polícia, castigada por cumprir a sua missão, desistirá de impor a lei e a ordem nesses territórios; porque os serviços públicos serão de pior qualidade, por falta de condições de segurança para operarem, porque o estigma de se residir neste bairro ou naquele, de infame ressonância, será porventura mais profundo. Mais visível.
Tanto mais que, aqueles que usam a morte de um homem para acusar toda uma sociedade de racismo, estão somente a virar as pessoas umas contra as outras. E nessa viragem, de violenta psicologia, serão sempre os mais pobres, os mais desfavorecidos económica e socialmente, a pagar o preço mais alto.
Até porque a classe média, também ela sofredora de condições económicas difíceis, também ela desprotegida perante a ganância das corporações e a clara hostilidade das elites, esmagada pela servitude fiscal, empobrecida por políticas económicas, monetárias e energéticas asininas e pela inflacção, aviltada pelo neo-liberalismo corporativo, garrotada pelos bem pensantes e pelos censores das academias e das redacções e dos gabinetes da decisão política, já não tem pena de ninguém. Já não tem paciência para as vítimas. Já não tem tolerância para autocarros em chamas e sobranceria moral.
Até porque as classes mais favorecidas, essa minoria de crocodilos chorosos que anda de mão dada com os radicais de esquerda para responsabilizar o resto da população por todos os problemas da civilização (factuais ou fabricados), não quer saber realmente do bem estar e da qualidade de vida dos pobres ou dos remediados. A agenda das elites não é tirar os pobres da pobreza. É empurrar os remediados para a miséria.
Odair é assim transformado numa espécie de arma branca da guerra fria – e civil – que insidiosamente se trava nas sociedades ocidentais entre os protagonistas das super-estruturas políticas e económicas e as massas. Sendo certo que está a ser utilizado pelos primeiros para divisão e enfraquecimento dos últimos.
Este repugnante exercício de propaganda do Expresso é exemplo desse método.
E quando Luís Montenegro, que acordou para os acontecimentos com o sonambulismo elitista que se lhe reconhece, e que enquanto o Bairro do Zambujal ardia, se entretinha com banquetes de recepção ao tirano Sánchez e com lamentos fúnebres por Marco Paulo, se esquece, nas suas pomposas declarações à imprensa, de reafirmar e legitimar a actividade policial nestes bairros onde ser polícia é objectivamente uma profissão de alto risco, só está a contribuir para o caos e para a intensificação das tensões sociais.
E Marcelo Rebelo de Sousa há-de fazer pior ainda. Porque podemos sempre contar com o actual Presidente da República para deitar gasolina sobre o incêndio que arde no coração da sociedade portuguesa.
AFONSO BELISÁRIO
Oficial fuzileiro (RD) . Polemista . Português de Sagres
___________
As opiniões do autor não reflectem necessariamente a posição do ContraCultura.
Relacionados
12 Nov 25
Tremembé: o glamour do abismo.
Há quem, com um certo orgulho, já chame 'prédio das estrelas' ao infame presídio. Espantem-se: não se trata de personalidades públicas que cometeram crimes, mas de criminosas brutais que se tornaram famosas justamente pelos crimes que cometeram. Uma crónica de Silvana Lagoas.
8 Nov 25
DREX: o medo da transparência total ou quando a moeda fala demais.
O DREX nasceu como a versão digital do real, inteligente e rastreável, que prometia segurança, inovação e inclusão. Mas o projecto foi suspenso porque o Estado brasileiro, habituado a vigiar, descobriu o desconforto de ser vigiado. A crónica de Silvana Lagoas.
7 Nov 25
Globalismo vs Nacionalismo
Nacionalismos e populismos contemporâneos são uma reacção à arrogância das elites globalistas e da sua governação distante e centralizada, propondo um regresso à identidade, à soberania e à autodeterminação. Uma crónica da Francisco Henriques da Silva.
4 Nov 25
Psicopata americano: “Estamos a matar as pessoas certas”.
Lindsey Graham rejubila porque os EUA estão a matar tanta gente que os seus arsenais registam falências superiores àquelas que foram observadas na II Guerra Mundial. É um todo poderoso psicopata e o logótipo vivo da mais tresloucada nação do século XXI.
4 Nov 25
A bala perdida não tem origem, tem destino.
As operações mais letais nas áreas urbanas controladas por criminosos e milícias voltam a expor o mesmo impasse: quando o Estado brasileiro entra em guerra com o crime, quem paga o preço é sempre o cidadão comum. Uma crónica de Silvana Lagoas.
3 Nov 25
O conflito geopolítico na Ucrânia e o redesenho do mundo.
A guerra na Ucrânia expôs as contradições do Ocidente e revelou que o mundo já não se organiza em torno de uma única hegemonia. Entre velhas potências e novos polos, o futuro exigirá reconciliação, complementaridade e coragem política. Uma crónica de António Justo.







