Paraíso Perdido (Milton) . A Serpente Aproxima-se . Gustave Doré . 1866

 

Um dos versículos mais comentados e debatidos da Bíblia é aquele onde a serpente oferece à Eva uma maçã alegando que, ao comê-la, se abririam seus olhos e a pobre mulher seria como Deus, “conhecendo” o bem e o mal. Pois a mesma não apenas a comeu como, também, a ofereceu a Adão: e ambos conheceram que estavam nus.

Tal trecho sempre é visto como um ato de desobediência da mulher, que convenceu seu homem a também comê-la, se relacionaram intimamente e tiveram, como castigo, sua expulsão do Paraíso. A conclusão imediata é que não devemos desobedecer a Deus, pois algum preço pagaremos por isso. Tal raciocínio é relativamente válido mas esconde um amplo leque de significados interpretativos que jazem ocultos, não somente por intencional que foi mas, até mesmo, pelo embotamento causado pelas traduções e esquecimento de palavras, ao longo dos milênios.

Vamos por partes: Nahash é uma palavra hebraica que significa “serpente”, “dragão”, “cobra” ou “ásside”. Na Bíblia, é uma das palavras mais comuns para traduzir “serpente”.
Na narrativa bíblica, a serpente é frequentemente interpretada como um símbolo negativo. No exemplo já citado acima, no Jardim do Éden, a serpente é vista como o veículo do “tentador” que levou à queda da humanidade.

No entanto, algumas interpretações recentes questionam essa visão negativa da serpente. No Antigo Oriente Próximo, serpentes eram frequentemente símbolos positivos de vida e sabedoria. Além disso, alguns argumentam que a narrativa de Gênesis 2–3 não indica que a serpente deva ser interpretada negativamente.

Cabe lembrar que a palavra nahash também está relacionada com a palavra nachash, que é um nome próprio masculino e, por óbvio, pode personificar o conceito do “tentador” – o Diabo, quase esquecido nos dias de hoje.

Vamos a uma segunda visão, esta já publicada por estudos de Wilson de Ângelo Cunha, Associate Professor for Biblical Studies and Theta Alpha Kappa chapter coordinator, da Le Tourneau University, School of Theology. Texas, EUA, e publicada na Revista PUC – Pontifícia Universidade Católica, de São Paulo:

“Tradicionalmente, a serpente (hebraico nāḥāš) tem sido interpretada como um símbolo negativo, em algumas fontes como o veículo usado pelo tentador para causar a queda da humanidade, mas essa visão negativa da serpente tem sido questionada recentemente.
Dois pontos principais são levantados com relação à narrativa de Gênesis 2–3: primeiro, na literatura e no material iconográfico do Antigo Oriente Próximo, serpentes funcionam como símbolos positivos, de vida e de sabedoria. Segundo, argumenta-se que a narrativa de Gênesis 2–3 não oferece indicações de que a serpente deva ser interpretada de modo negativo. O presente artigo argumenta contra essa postura recente e mostra que, tanto da perspectiva do material do Antigo Oriente Próximo e da narrativa própria, a serpente é melhor interpretada como um símbolo negativo.”

À parte a visão pérfida que primeiro ofereci neste artigo, que busca fundamentos em costumes do antigo Oriente para “limpar” a malignidade da serpente – argumentos os quais não vale a pena sequer contestar – digno é que se comente a interpretação do doutor Wilson de Ângelo Cunha a qual, pelo menos, recusa-se a enxergar a víbora sob tal hipocrisia naïf.
A argumentação deste doutor foca no simbolismo negativo da mesma, amparado no contexto da narrativa bíblica e, mesmo, dos próprios materiais pesquisados no Oriente. Parabéns.

Entretanto, não apenas o nobre doutor como, igualmente, seus demais colegas, foram capazes de transcender a mera análise histórica e linguística, de modo a atingir a verdadeira profundidade da alma humana, contida em tal versículo.

Mais que mera tradução, nahash simboliza o único animal capaz de dobrar-se sobre si mesmo e – metaforicamente – devorar o próprio rabo, comendo-se e dando cabo de sua própria existência. Sem pretender incorrer no erro filosófico do psicologismo, atrevo-me a perguntar se o leitor teria percebido alguma semelhança com a capacidade, exclusivamente humana, de reflexão e, principalmente, introspecção. Alguém?

O leitor já sabe onde quero chegar: a introspecção, consequência natural do livre arbítrio e da consciência de si mesmo, dada por Deus, é uma faca de dois gumes. Por um lado, é algo extremamente necessário e útil, propulsor de inspirações filosóficas, religiosas e até sociais, levando-nos a meditar sobre o que realmente importa. Por outro – e a depender do temperamento e da índole de cada um – poderá conduzir o infeliz cidadão até mesmo a atitudes catastróficas e suicidas ou, como no caso bíblico, de vazão do puro desejo de poder.
Sim, não foi outro o desejo de Eva. Nas traduções, temos o “conhecer o bem e o mal”, mas o sentido original é “determinar o que é bom e mal” – tarefa posteriormente resolvida pelos filósofos iluministas, que cumpriram assim o velho desejo da mulher de Adão.

Creio que este último parágrafo deixa claro que o conhecimento não é, nem jamais o foi, prejudicial ou contrário aos desejos Divinos. Por outro lado também nos explicita que a determinação daquilo que é bom ou mal – a moral judaico cristã – é algo da alçada exclusiva de Deus Pai e não nos cabe, portanto, pretender mudar o conteúdo da Verdade Revelada.
Quando filósofos de outrora afastaram Deus do centro de seus estudos e, em seu lugar, colocaram o homem, nada mais fizeram que romper as amarras de quaisquer limites morais do pensamento além de, é claro, abrir caminho para o doentemente egocêntrico “psicologismo” – nesta distorção, todos os males humanos resultam de problemas exclusivamente psíquicos, banindo quaisquer resquícios de Deus, do Diabo ou outras razões que transcendam a compreensão terrena e leiga – um exemplo de introspecção negativa, por parte destes pensadores.

Apontar a serpente como um símbolo da citada introspecção pode parecer uma contradição, diante do que defendo neste artigo. Entretanto, é necessário que assim se compreenda para que possamos distinguir o verdadeiro peso das ações humanas em contraposição aos desígnios divinos. Ao ser expulso do Paraíso, o primeiro casal simbolizou o fim da infância para a realidade da vida, mas isso também os ensinou – e da maneira mais dura – que somos sempre responsáveis por nossas ações e omissões.

Para finalizar – e que as feministas me perdoem – consideremos a determinação de Deus “e porei inimizade entre a tua semente e a tua semente; tu ferirás sua cabeça e tu lhe ferirás o calcanhar”, disse o Senhor entre Eva e a serpente: isso explica o porquê da introspecção não ser uma das características mais marcantes do sexo feminino – basta enumerarmos a quantidade de filósofos homens versus a quantidade de filósofas mulheres. Enquanto homens podem recolher-se durante meses, anos, em meditações existenciais, as mulheres normalmente dedicam suas introspecções – normalmente bem mais breves – a assuntos muito mais terrenos, tais como seu casamento, seus amores ou até mesmo decisões profissionais – e a mais conhecida de tais meditações foi sobre o poder de determinar o que é bom ou mal neste mundo.

Tenho a esperança de que estas linhas, mesmo que digeridas em um domingo de descanso, tenham o poder de mostrar ao leitor algo mais que o propósito inicial do mesmo. Que o amigo derive suas considerações e conclua, concordando com o autor, que o cristianismo católico é a mais introspectiva das religiões – ultrapassa, em muito, as teatrais meditações zen-budistas – e faça o amigo encontrar, dentro de si mesmo, a centelha divina que o inspira e anima todos os dias, tendo um vislumbre da Verdade.

Os dias passam, o mundo passa, nossa vida passa. Nossa alma, entretanto, é imortal.

Que sejamos, todos, dignos de tal graça.

 

WALTER BIANCARDINE
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Walter Biancardine foi aluno de Olavo de Carvalho, é analista político, jornalista (Diário Cabofriense, Rede Lagos TV, Rádio Ondas Fm) e blogger; foi funcionário da OEA – Organização dos Estados Americanos.
As opiniões do autor não reflectem necessariamente a posição do ContraCultura.