O tema da perda é literário por definição. Homero perdeu Heitor, perdeu Aquiles e perdeu Ajax, para depois nos contar a história de como Ulisses se perdeu no Mediterrâneo. Heródoto perdeu a bússola, Tucídides perdeu a guerra, Cícero perdeu a vida, Milton perdeu o paraíso, Cervantes perdeu Dulcineia, Camões perdeu um olho, Shakespeare perdeu Romeu, perdeu Julieta e perdeu Hamlet, Proust perdeu tempo, Joyce perdeu o tino, Borges perdeu-se num labirinto, Fernando Pessoa perdeu Ofélia, duas vezes, e até o Afonso Cruz decidiu escrever um romance sobre o destino dos guarda-chuvas que perdemos todos os invernos.

A norte-americana Elisabeth Bishop (1911-1979), uma das mais notáveis artesãs da língua inglesa no século XX, Prémio Pulitzer de Poesia pelo seu “North & South – A Cold Spring”, também se dedicou ao tema. Conhecida por passar meses a escrever e rescrever o mesmo poema, com o intuito de o tornar “espontâneo”, contradição em termos que não se importava nada de confessar, a poetisa deve ter dedicado muitas horas de trabalho a “One Art”, uma composição delicadamente tricotada e de natureza biográfica, escrita depois do suicídio de Lota, a sua amante no tempo em que viveu no Brasil.

Bishop começa por se referir às pequenas e prosaicas e rotineiras perdas de cada dia, avança para os objectos sentimentais e os valores patrimoniais e os locais geográficos que são transviados pela vida, para na conclusão dos versos evocar a morte da amada, num poema que está carregado de ironia e que, na sua aparente leviandade, traz nas entrelinhas o sofrimento intenso que nos assalta perante a morte de alguém que queremos apaixonadamente.

A variação do ContraCultura procura respeitar esse itinerário semântico, tanto como a estrutura rítmica e rimática deste poema assombroso.

 

Original

ONE ART

The art of losing isn’t hard to master;
so many things seem filled with the intent
to be lost that their loss is no disaster.

Lose something every day. Accept the fluster
of lost door keys, the hour badly spent.
The art of losing isn’t hard to master.

Then practice losing farther, losing faster:
places, and names, and where it was you meant
to travel. None of these will bring disaster.

I lost my mother’s watch. And look! my last, or
next-to-last, of three loved houses went.
The art of losing isn’t hard to master.

I lost two cities, lovely ones. And, vaster,
some realms I owned, two rivers, a continent.
I miss them, but it wasn’t a disaster.

—Even losing you (the joking voice, a gesture
I love) I shan’t have lied. It’s evident
the art of losing’s not too hard to master
though it may look like (Write it!) like disaster.

 

Versão do Contra

UMA ARTE

A arte de perder não é de difícil mestria;
Há tantas coisas que parecem cheias de vontade
de se perderem que a sua perda não faz razia.

Aceita o incómodo de perder em cada dia
as chaves de casa, a hora que não deixa saudade.
A arte de perder não é de difícil mestria.

Depois procura perder, com mais alcance e energia,
os nomes, os lugares para onde talvez te agrade
viajar. Nada disto traz razia.

Perdi o relógio da minha mãe. E também a moradia,
última-ou-quase de três casas da minha afinidade.
A arte de perder não é de difícil mestria.

Perdi duas cidades amadas. E mais perdia;
alguns reinos meus, dois rios, uma tempestade.
Dei-lhes pela falta mas não pela razia.

Até perder-te (a tua voz, o teu gesto e a ironia
que amava) não devo ocultar – é de claridade:
a arte de perder não é de difícil mestria
mesmo quando parece fazer (di-lo!) fazer razia.