Tadej Pogačar ganhou em Maio o Giro de Italia, com seis vitórias em etapas e nove minutos e 56 segundos sobre o segundo classificado. Muitos afirmaram que esta vitória esmagadora se devia em grande parte à ausência de competidores à altura do esloveno, já que os melhores dez ou quinze ciclistas do top 20 da elite do circuito profissional não tinham comparecido à partida. Diziam também os cépticos que o esforço de Tadej no itálico sobe e desce poderia até custar-lhe caro nas altitudes ainda mais exigentes da sádica competição francesa.
Acontece que dois meses depois, Pogačar vence o Tour, pela terceira vez, com as mesmas seis vitórias em etapas, seis minutos e 17 segundos sobre Jonas Vingegaard e nove minutos e 18 segundos sobre Remko Evenepoel, os dois melhores voltistas da actualidade (excluindo o próprio esloveno) e na presença de um pelotão que este ano integrava a nata da nata do circuito profissional. Só para que se tenha uma noção da superioridade de Pogačar, o líder da milionária Ineos, Carlos Rodriguez, ficou a 25 minutos do vencedor. O melhor ciclista da não menos endinheirada Bahrein, ficou a meia hora, apesar de ter conseguido um lugar no top 10.
Tadej Pogačar mostrou neste Tour que é, de longe, o melhor ciclista da actualidade e que tem potencial – e vontade – para, no fim da carreira, ficar para a posteridade como o melhor ciclista de sempre.
Mas vamos por partes.
À quarta etapa, uma sobredose de informação.
Depois de corrida a primeira etapa de montanha a sério deste muito esperado Tour de France, que terminava na subida e na descida do terrível Galibier, era possível tirar já várias conclusões:
Que Vingegaard não estava na condição hercúlea que mostrou nas duas últimas edições, por força de se ter partido todo no País Basco, há uns meses atrás; que Pogačar, parecendo mais forte, também não estava num pico de forma monstruoso, talvez a pagar o preço da sua vitória no Giro, há menos de dois meses; que João Almeida parecia ser o mais fíavel companheiro de aventuras do esloveno, já que Adam Yates não estava com pernas para acompanhar os melhores, e Juan Ayuso é, basicamente, um canalha, que não mostrava o mínimo interesse em favorecer o esforço de equipa e tinha como objectivo claramente um lugar no pódio (Almeida bem que barafustou, mas o espanhol limitou-se a fingir que pertencia à UAE em vez de estar a correr por conta própria, que foi o que aconteceu de facto).
Também ficámos a saber que, na Ineos, Bernau ainda não chegou ao nível performativo de outros tempos, que ainda não é desta que Thomas Pidcock convence como candidato ao pódio de uma competição de três semanas (se é que alguma vez o vai ser) e que o verdadeiro líder da equipa britânica que tem mais dinheiro que resultados era Carlos Rodriguez, à semelhança do que aconteceu no ano passado.
Fomos acrescidamente informados que Carapaz não estava no Tour para lutar por um lugar nos dez primeiros; que Enric Mas não tinha pedalada para mais que tentar ganhar uma etapa; que Remco Evenepoel podia dar alguma luta aos dois extraterrestres que têm dominado as últimas edições da mais importante prova ciclística da galáxia, considerando os muitos quilómetros de contra-relógio que é necessário cumprir (trata-se afinal do campeão mundial da coisa); e que Roglic está a ficar velho para estes esticões, embora se vá aguentando à bronca, Deus sabe com que sofrimentos.
E pronto, era tudo. Que não era pouco.
Cavendish: Aos 41 anos, um triunfo para os anais.
À quinta etapa, contra todas as expectativas e numa manifestação de vigor físico, frieza sobre pressão, calculismo científico e indefectível determinação, Mark Cavendish conseguia a sua 35ª vitória no Tour, ultrapassando finalmente Eddie Merckx na lista de ciclistas com mais vitórias na mais importante prova do circuito internacional.
Um momento histórico, que vale a pena ver e rever.
A meio do Tour: Vingegaard recupera e encosta Pogačar a uma parede angulosa.
O Tour corria atípico. Com um desenho no mínimo polémico, a competição alternava etapas que adormecem qualquer cocainómano com dias de fúria absolutamente espectaculares, como aqueles que aconteceram na vertiginosa etapa 4, no inferno de gravilha da etapa 9, ou no duelo de titãs da etapa 11.
Os últimos cinquenta quilómetros deste drama épico incluíam 4 subidas: a última, de terceira categoria, não apresentava grandes dificuldades, para além da exaustão, mas as 3 anteriores, duas de segunda categoria e uma de primeira, somavam mais de 14 quilómetros de escalada a uma média que ultrapassava os 8% de inclinação. Não sendo propriamente uma etapa de alta montanha, o desafio não deixava de ser hercúleo.
Pogačar, claro, atacou no fim da montanha mais difícil, com um ímpeto tal que até assustou o seu companheiro de equipa, Adam Yates, que lhe antecedia a roda. O esloveno saiu disparado e Vingegaard olhou à sua volta para ver quem é que estava disposto a responder. Roglic e Evenpoel tentaram, o dinamarquês seguiu atrás, mas neste momento toda a gente estava a pensar que Pogačar ia, se não resolver aqui o Tour, pelo menos ganhar uma confortável almofada de vantagem sobre os seus mais directos adversários.
Toda a gente estava equivocada, porque, apesar da vantagem, no fim da descida do Puy Mary, ser de 35 segundos, na subida subsequente Vingeggaard ligou a central eléctrica que tem nas pernas, deixou Roglic e Evenpoel para trás e foi à caça do camisola amarela, com a determinação de um fox terrier e a potência de um pitbull.
Pogačar não podia acreditar no que estava a acontecer, quando no cimo do Col de Pertus constatou que tinha o dinamarquês na sua roda. Ainda sprintou com sucesso para os segundos de bonificação desse prémio de montanha, mas, 15 quilómetros mais à frente, completamente exausto e a pagar o preço do seu ataque desembestado a mais de 30 quilómetros do fim da etapa, não foi capaz de vencer o rival, que pela primeira vez na sua carreira sénior ganhou uma etapa ao sprint.
Vingegaard, que há 3 meses atrás estava todo partido numa cama de um hospital no País Basco, fez mais do que vencer esta etapa. Encostou animicamente Pogačar à parede de uma casa dos bicos, ao demonstrar que estava de regresso à sua forma de alienígena e que pode bater o esloveno nas condições mais exigentes.
Pogačar continuava com uma vantagem de 1’06 sobre Evenpoel e 1’14 sobre o dinamarquês, mas nessa noite não deve ter dormido lá muito bem.
Entretanto, João Almeida, que parecia ter aprendido com Ayuso a arte de fingir que trabalha para a equipa enquanto tomava conta exclusiva de si próprio, subia na geral e era agora quinto. Se tudo corresse pelo melhor, e se os quatro magníficos que tinha à frente não tivessem ataques de coração ou quedas dantescas, este seria a melhor posição a que podia aspirar, embora houvesse que contar com a feroz concorrência do líder da Ineos, Carlos Rodriguez, que estava apenas a 20 segundos do ciclista das Caldas da Rainha. Se conseguisse permanecer nesta posição, seria um feito brutal. Mas qualquer classificação no top 10 era positiva para o João, desde que à frente dos seus companheiros de equipa na UAE, com excepção de Pogačar, obviamente.
Seja como for, o Tour, a meio do seu percurso, estava completamente em aberto e até Evenepoel podia sonhar, considerando que ainda havia um longo contra-relógio para resolver.
Pogačar, o ganhador inveterado.
As etapas 14 e 15 do Tour não deixaram grandes dúvidas: Tadej Pogačar era o mais forte ciclista em prova e, salvo invasão de alienígenas ou eclosão de guerra termonuclear, iria somar a sua terceira vitória na competição.
Na alta montanha, o esloveno imperou sobre o seu rival Jonas Vingegaard com classe, pernas de ferro e o espírito indomável que o caracteriza, somando mais de 3 minutos de vantagem sobre o dinamarquês.
Na etapa 14, atacou apenas nos quilómetros menos inclinados da última subida, que também eram os derradeiros, calculando, com alguma razoabilidade, que seria a solução mais segura, dado que Vingegaard é muito competente nas inclinações mais dramáticas. Contando com o apoio, mais à frente, do seu fiel companheiro de equipa Adam Yates, que se tinha entretanto adiantado ao pequeno grupo dos mais aptos ciclistas deste Tour, numa brilhante jogada táctica, Pogačar somou nesse dia 40 segundos à vantagem de minuto e meio que já trazia na classificação geral, sobre o seu rival da Jumbo Visma.
Porém, na infernal e desumana e impossível jornada de domingo, que tinha ‘só’ 4 subidas de primeira categoria e terminava numa escalada de categoria especial, perdeu as cautelas e atacou no apogeu da inclinação, a mais de cinco quilómetros do topo do Plateau de Beille, para destruir completamente o tempo recorde desta subida (que pertencia a Thibaut Pinot) e deixar Vingegaard, que apostava tudo nesta etapa, a mais de um minuto, somando agora três minutos de vantagem na classificação geral.
Só muito dificilmente, ou no país de Alice, é que o dinamarquês poderia roubar tanto tempo ao esloveno, no que restava correr deste Tour.
O esforço hercúleo da Jumbo Visma, que tinha nitidamente esta etapa marcada para um ataque massivo e que deu tudo o que tinha e o que não tinha, durante cento e noventa quilómetros de sobe e desce ensandecedor, para colocar o seu chefe de fila em posição de dar luta a Pogačar, é de louvar. Mas fracassou.
Enquanto isto, Remko Evenepoel teve duas lições de humildade durante o fim de semana (que muita falta lhe faziam), não lhe restando outra alternativa que conformar-se com o facto de ser o terceiro melhor atleta em prova, até porque Primoz Roglic tinha entretanto abandonado a competição, depois de mais uma aparatosa e dolorosa queda.
João Almeida, perdeu algum tempo para Carlos Rodriguez no sábado, mas fazendo recurso à sua característica mania de correr de trás para a frente, voltou a ganhar vantagem ao espanhol no domingo, e continuava num muito saboroso – e honroso – quarto lugar da tabela, sendo agora ameaçado mais directamente por outro hermano, Mikel Landa, para o qual perdeu preciosos minutos no conjunto das duas etapas e que se encontrava a apenas 27 segundos do ciclista português, na partida para a última semana da competição.
Há porém que notar que o João não tinha sido até aqui assim um fantástico companheiro de equipa para Pogačar. Não é que o esloveno precisasse, a ajuda de Adam Yates tinha chegado e sobrado para as encomendas, mas era nítida no ciclista das Caldas da Rainha uma atitude egotista, que pelo menos na avaliação deste redactor, é muito pouco recomendável.
Uma das razões pelas quais o ciclismo é uma modalidade fascinante é que se trata de um exercício de sacrifício em prol dos objectivos das equipas. E o João sacrificava-se bastante, sim, mas em prol dos seus próprios objectivos – e isso é feio.
O que não quer dizer, paradoxalmente, que não seja de celebrar o facto de ele estar a ser muito bem sucedido no primeiro Tour da sua vida. Mas seria razoável temer que esta atitude, mesmo que conduzisse ao quarto ou quinto lugar no fim da festa, o prejudicasse no seio da UAE, que, convém lembrar, tem muitos artistas por onde escolher e já a seguir vai eleger uma cabeça de cartaz para a Vuelta. Isto se o maluco do Pogačar não decidir que quer fazer história e ser o primeiro ciclista a ganhar as três maiores competições do circuito internacional na mesma época, claro está.
Seja como for, o esloveno já estava a fazer história. Na verdade, Pogačar faz história sempre que sobe para cima de uma bicicleta. Este ano já ganhou 17 etapas nas competições em que participou. Na Primavera, Ganhou o Giro, a Liège–Bastogne–Liège e a Strade Bianche. Somava neste momento o redondo número de 80 vitórias no circuito profissional (viria a somar mais três a este número). É um ganhador impenitente e inveterado.
É, aos 25 anos de idade, um imortal da modalidade.
Um desenlace previsível, um domínio imprevisto.
As três últimas etapas desta edição do Tour, com dois dias de alta montanha e um final em contra-relógio bastante acidentado, prometiam muito, embora os 3 minutos que o esloveno já levava de vantagem apontassem para o seu claro favoritismo. Apesar dessa posição muito favorável, Pogačar ganhou as três etapas, sem espinhas e com uma facilidade quase ridícula.
Na sexta-feira, no percurso entre Embrun e o topo do Isola 2000, que guardava duas subidas intermináveis de categoria especial e uma última de primeira categoria, o campeoníssimo atacou a nove quilómetros do fim e deixou toda a gente para trás, ganhando a Evenepoel e Vingegaard mais de um minuto e quarenta e resolvendo em defintivo qualquer dúvida sobre o vencedor do Tour.
No Sábado, o esloveno disse à partida que ia apenas desfrutar da terrível etapa entre Nice e o Col de la Coillole, que oferecia o sofrimento de uma subida de segunda categoria e três de primeira. Mas a verdade é que a Soudal de Evenepoel, que sonhava ainda com um hipotético segundo lugar, puxou imenso pelo pelotão, só para deixar o belga exausto nos últimos quilómetros, incapaz até de suster o contra-ataque de Vingegaard. Pogačar seguiu na roda do dinamarquês e a duzentos metros do fim disparou em direcção à meta, para somar a quinta vitória nesta edição da prova.
Como se tudo isto fosse pouco, o alienígena dos Balcãs decidiu terminar a prova em beleza e no contra-relógio entre o Mónaco e Nice que marcava o último dia da competição, deu um minuto e três segundos a Vingegaard, que de qualquer forma fez uma excelente etapa, e um minuto e 14 segundos a Evenepoel, que por acaso até é o campeão do mundo da especialidade.
De tal forma é alucinante a sua vontade de papar etapas e títulos que, já com o Tour mais que ganho, o endiabrado rapazinho tratou de correr todos os riscos e mais alguns para triunfar no domingo, executando a descida para Nice como um número de circo, sendo certo que os precipícios são desprovidos de rede e o asfalto não está estofado com tapetes. O homem é completamente passadinho da cabeça.
É assim impossível resistir animicamente a um monstro destes e no fim, o dinamarquês da Visma era a imagem do desalento. Ele que, para quem tinha sofrido o acidente que sofreu uns poucos meses antes, até se apresentou numa forma invejável.
João Almeida portou-se mesmo muito bem nestas últimas três etapas: Ajudou Pogačar nas altitudes, susteve os ataques de Mikel Landa e terminou sempre no top 10 – conseguindo um excelente quinto lugar no contra-relógio – para terminar em quarto, a segunda melhor classificação de sempre de um ciclista português no Tour de França. Para a sua primeira participação na prova não podia ter corrido melhor, apesar das críticas que já lhe fiz a propósito de se ter escusado, aqui e ali, a trabalhar para o seu líder. Vamos ficar na expectativa para ver como as coisas correm na Vuelta.
Seja como for, é maravilhoso ter um português entre os primeiros, na primeira competição ciclística mundial.
Uma última palavra para Richard Carapaz: o ciclista equatoriano, que venceu o Giro em 2019 e é o actual campeão olímpico de estrada, é um indomável da modalidade e neste Tour conseguiu a proeza de envergar a camisola amarela durante um dia, ganhar uma etapa e acabar a prova com a camisola das bolinhas vestida, depois de conquistar, de forma mais que merecida, o Prémio da Montanha. Com este registo, faz agora parte do restrito clube de ciclistas que já vestiram a amarela e já ganharam etapas nas três mais importantes competições do circuito internacional: o Tour, o Giro e a Vuelta.
Durante quase toda a prova, o equatoriano suou, lutou, sofreu, chegou-se à frente, perdeu-se para trás, recuperou, triunfou, fugiu e foi apanhado, ultrapassou e foi ultrapassado. Foi uma alegria vê-lo correr, voluntarioso e danado, pelas montanhas acima e pelos declives a baixo. Se fosse um tipo mais disciplinado, e um pouco mais aplicado nos treinos e na preparação, Carapaz podia perfeitamente ter discutido um lugar no pódio desta edição do Tour (e de outras). Mas como é um doido, prefere correr assim, livre de compromissos, ao sabor do vento e como lhe dá na gana. O problema é dele. O prazer é nosso.
A edição de 2024 do Tour foi deveras entretida, com algumas etapas mesmo espectaculares, apesar das muitas outras, planas, que adormecem a mais desperta das audiências, e do domínio de Tadej Pogačar. Para o ano, talvez Jonas Vingegaard seja capaz de dar mais luta ao esloveno. E talvez Evenepoel suba um degrau na sua capacidade para fazer frente aos dois campeões. A ver vamos.
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