A primeira volta das eleições antecipadas para a Assembleia Nacional francesa confirmou os resultados das eleições para o Parlamento Europeu, no início de Junho. O resultado destas últimas encorajou Emmanuel Macron a dissolver o Parlamento, na esperança de travar a ascensão da sua oposição.
A estratégia não funcionou de todo.
Ambas as votações não foram apenas uma bofetada na cara do partido no poder e do próprio Macron, que, juntamente com o seu séquito, suscitou uma antipatia nos franceses que ele claramente não consegue compreender. O desastre eleitoral não foi apenas um protesto contra as suas políticas – seja a reforma das pensões, a privatização das indústrias nacionais, a imigração desregrada, o enfraquecimento dos serviços públicos, os bónus para as grandes corporações e uma política externa inconsistente e irreflectida. Os resultados também podem ser interpretados como uma espécie de vingança pelo polémico referendo de 2005: pela primeira vez, a extrema-direita e a extrema-esquerda (os herdeiros dos partidos que, há menos de vinte anos, apelaram ao voto contra a Constituição Europeia) obtiveram, em conjunto, a maioria absoluta.
Na altura, os franceses votaram esmagadoramente contra o projecto de Constituição Europeia, que, no entanto, foi adoptado alguns anos mais tarde por votação parlamentar com pequenas alterações (não como Constituição, mas como um tratado europeu que a substitui). Desde então, não se realizaram referendos em França.
Este desrespeito aberto pela vontade dos cidadãos foi o primeiro golpe sério nos ideais europeus. Muitos começaram a questionar se as palavras “mais Europa significa mais democracia” eram verdadeiras. Contribuiu também para uma diminuição da participação eleitoral: porquê votar se tão pouco depende disso? A desilusão com as promessas de uma “Europa social”, uma “Europa democrática”, uma “Europa estrategicamente independente” transbordou para o movimento dos “coletes amarelos” de 2018. Uma das suas principais reivindicações era o restabelecimento da capacidade de influenciar as questões orçamentais, financeiras e sociais locais, regionais e nacionais que afectam diretamente a vida dos franceses.
De acordo com vários analistas, as eleições de 30 de Junho e 7 de Julho podem tornar-se uma repetição dos “coletes amarelos”, a revolta social da chamada “França periférica” – os habitantes de pequenas cidades e vilas afectados pelos processos de globalização e integração europeia.
Nesta França há cada vez mais eleitores a votar no Ressamblement National, mas o crescimento constante do apoio ao partido, liderado há muitos anos por Marine Le Pen, também se observa noutros sectores da população – entre os cidadãos mais ricos, os reformados, os residentes nos territórios ultramarinos, etc. Inicialmente um partido de pequenos comerciantes, o chamado partido dos lojistas (a Front National como se chamava antigamente) adaptou recentemente os slogans e o programa ao seu novo eleitorado – os que ficaram para trás e os que valorizam o gaullismo social e as suas conquistas: segurança social desenvolvida, estabilidade e prestígio internacional da França.
Segundo o sociólogo Luc Ruban, a crescente popularidade do partido de Le Pen não pode ser explicada por “fortes explosões de raiva”, “racismo” ou “desejo de um líder autoritário”. Serge Klarsfeld, um dos líderes mais venerados dos judeus franceses e defensor da memória das vítimas dos campos de concentração nazis, afirmou que, se tivesse de escolher entre a ‘ultra-esquerda’ e a ‘ultra-direita’, não hesitaria em votar nesta última porque “não é antissemita nem racista”. Prova de uma mudança séria na imagem do partido.
Ao mudar de nome e ao abandonar o rótulo de “antissemita” (associado às declarações do seu fundador, Jean-Marie Le Pen), o Rassemblement National conseguiu explorar o descontentamento de longa data dos sectores que sentem os efeitos negativos da globalização. O nacionalismo do partido é mais defensivo do que agressivo; encarna uma inquietação causada pelo afluxo da imigração, que afecta o mercado de trabalho e as condições de emprego, bem como a rápida mudança de face de uma sociedade que era cultural e etnicamente muito mais homogénea há trinta ou quarenta anos atrás. O movimento capitaliza todos estes receios e a sua popularidade crescente é natural.
Tanto mais que a esquerda se recusou a responder às questões cruciais do país, abdicando da luta de classes e da defesa dos interesses dos operários, para se transformar numa operação neo-liberal em defesa das minorias, sejam elas étnicas, sexuais ou outras. É claro que os slogans de apoio aos pobres continuam presentes nos seus programas, incluindo o da Nouveau Front Populaire, criada à pressa, que inclui o La France Insoumise, os Verdes, os socialistas e os comunistas. Mas, como mostra a experiência dos últimos anos, todas estas esquerdas estão muito menos interessadas no problema das desigualdades sociais do que em questões como o apocalipse climático, o aborto, a eutanásia, o casamento entre pessoas do mesmo sexo ou a ‘diversidade’.
Actualmente, é impossível imaginar um ultra-esquerdista a repetir as palavras de Georges Marchais, líder do Partido Comunista Francês, em 1980:
“É necessário acabar com a imigração legal e ilegal. É totalmente inaceitável deixar entrar cada vez mais trabalhadores migrantes em França, quando o nosso país já tem 2 milhões de franceses desempregados e imigrantes que já se instalaram aqui.”
Actualmente, o número de desempregados atingiu quase 5,5 milhões e o número de imigrantes legais e ilegais foi multiplicado por dez, mas a esquerda não vê isso como um problema e dedica-se sobretudo a lutar contra “todas as discriminações”. Os socialistas desacreditaram-se seriamente durante o governo de François Hollande, que se apresentou como “inimigo da finança internacional”, mas fez muito pouco para proteger os pobres, apresentando a lei da “igualdade matrimonial” como a sua principal realização.
A inclusão de Hollande nas fileiras da Nouveau Front Populaire no contexto da actual campanha eleitoral desvaloriza as promessas de políticas alternativas da esquerda. As recentes palavras sobre uma “Europa social, democrática e estratégica” no seu programa não convencem muita gente, e a convergência da posição sobre o conflito na Ucrânia com a de Macron não deverá agradar aos eleitores, a maioria dos quais não apoiou as iniciativas belicosas do Presidente.
Se em 2019 os observadores esperavam uma convergência dos protestos de extrema-esquerda e de extrema-direita e a emergência de um bloco de protesto a nível nacional, é hoje claro que isso não se materializou. Uma das líderes do movimento de ‘descolonização’ da França, a escandalosa Huria Bouteldja, contrasta, no seu último livro, os brancos pobres (“deploráveis”) e os imigrantes das antigas colónias (“bárbaros”) e reflecte sobre a sua incapacidade de se unirem contra o macronismo.
Mas numa sociedade multicultural, o nível de rendimento não é o único critério de classe e de identidade política. O rápido crescimento da diversidade étnico-cultural e a rejeição de políticas de assimilação cultural em favor do multiculturalismo pelos círculos dominantes levaram à fragmentação da nação em minorias e ao surgimento do que o sociólogo Jérôme Fourquet chama de “França Arquipélago” no lugar de uma República Francesa unida e indivisível.
O mapa eleitoral reflectirá perfeitamente esta diversidade. É previsível que o Rassemblement National ganhe nas pequenas cidades e nas zonas rurais (os deploráveis). Nas cidades de média dimensão, a maioria dos votos irá provavelmente para os candidatos socialistas (a burguesia boémia, apaixonada pelo ambiente e que fez da luta contra o “fascismo” a sua razão de ser). Os grandes subúrbios de Paris, Marselha e Lyon elegerão os deputados que apelam à população imigrante. Os bairros centrais de Paris e Lyon serão os últimos bastiões do macronismo (as classes altas, bem adaptadas à globalização). Por fim, em Marselha, onde a base eleitoral de Macron é extremamente reduzida, a França da Nouveau Front Populaire enfrentará directamente o “Rassemblement Nationale”, os “deploráveis” contra os “bárbaros”.
Após a primeira volta, o país e o parlamento estão divididos em três grandes blocos.
Os opositores podem ser tão radicais quanto quiserem nas palavras, mas quando se trata de agir, são incapazes de oferecer uma verdadeira alternativa às políticas dos seus antecessores. Isto pode ser visto noutros países europeus onde os “extremistas” estiveram no poder. A extrema-direita e a extrema-esquerda francesas atenuaram as suas críticas a Bruxelas e, se chegarem ao poder, é mais provável uma integração relativamente suave nas estruturas pan-europeias do que uma tentativa de reforma radical por parte de Paris. As declarações e acções da oposição podem ser vibrantes e demonstrativas, podem causar motins e protestos, podem levar ao caos interno. Mas é pouco provável que consigam quebrar a tendência geral de desenvolvimento.
E Le Pen, mesmo que seja um dia eleita Presidente, seguirá o trajecto convergente e conformista de Giogia Meloni, mais traição menos traição. As forças gravíticas dos poderes instituídos na Europa são demasiado poderosas para que políticos de carreira consigam escapar à sua órbita. E os obstáculos internos, cristalizados nas estruturas burocráticas do país, que serão colocados a políticas populistas, mesmo que moderadas, serão imensos.
O economista Frederick Farah sublinhou que “nas últimas décadas, verificámos que qualquer que seja a maioria no poder, esta aplica sensivelmente as mesmas políticas, o que conduz à deterioração das condições de trabalho e de emprego estável, ao desmantelamento dos serviços públicos, ao aumento da pobreza, à redução da base industrial do país, à vulnerabilidade estratégica e à ascensão do populismo”.
Os resultados de 7 de Julho podem, portanto, ser saudados com as palavras “O Macronismo está morto, viva o Macronismo!
Mas esta trajectória estará, a médio e longo prazo, em rota de colisão com a vontade dos povos. E mais tarde ou mais cedo, perante a impotência das urnas, outros instrumentos de captação do poder pelas massas poderão emergir. E todos sabemos que, historicamente, esses instrumentos são mais aguçados que palavras de ordem, e mais brutais até, do que a ambição totalitária das elites contemporâneas.
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