É sempre difícil comparar índices competitivos de uma corrida com a história lendária das 24 Horas de Le Mans, mas A 101ª edicão é capaz de ter sido a mais competitiva de sempre.

Para termos uma ideia daquilo que foi renhida a corrida e da incerteza que se viveu entre as quatro da tarde de sábado e as quatro da tarde de domingo, basta dizer isto: Entre o primeiro e o quarto automóvel a cortar a linha de chegada foram cronometrados menos de 38 segundos. Mas vale a pena contar a história do princípio.

 

À partida, tudo em aberto.

Como já no ano passado o Contra teve oportunidade de sublinhar, o World Endurance Championship (WEC) está a viver um apogeu, graças aos regulamentos que entraram em vigor em 2023. Só na categoria Hypercar apresentavam-se 23 lindíssimos protótipos de muitas das mais conceituadas marcas da indústria automóvel. Considerando o que tinha acontecido na qualificação e na hyperpole, 6 marcas podiam de todo sonhar com a vitória, incluindo Ferrari, Porsche, Toyota, Cadillac, BMW e Alpine. A Peugeot, que continua a ter dificuldades de desenvolvimento do seu protótipo e a Lamborghini, que participava pela primeira vez na prova, não pareciam ter um ritmo capaz de competir com os mais rápidos e a Isotta Fraschini, que não tem recursos comparáveis aos grandes fabricantes mundiais, estaria, aparentemente, condenada a fazer uma espécie onerosa de turismo de alta velocidade.

 

O estreante, e exuberante, Lamborghini da Iron Lynx

 

Por outro lado, a lista de pilotos impressionava: dos alienígenas de alto calibre como Jenson Button, Romain Grosjean, Robert Kubicha, Nicolas Lapierre e Mick Schumacher aos consagrados das competições de turismo e resistência como Antonio Giovinazzi, Kevin Estre, Nick de Vries, Sebastien Bourdais, Andre Lotterer, Sebastien Buemi, Brendon Hartley, Alessandro Pier Guidi e Kamui Kobayashi, entre muitos outros craques, como o português Filipe Albuquerque, que partia na quarta posição da grelha entre os LMP2, o leque de talentos estava tão aberto como a própria corrida.

 

Kevin Estre, nos limites do possível.

A hyperpole deu logo a ideia da loucura febril que ia permear a corrida. Depois do Cadillac nº 2 fazer uma volta canhão e convencer meio mundo de que ia partir para a odisseia de La Sarthe na frente do pelotão de 60 automóveis, Kevin Estre, que é sem dúvida um dos melhores pilotos de carros de corrida da actualidade, pegou no Porsche e fez um pequeno milagre precisamente na última volta desta qualificação. Com um carro mais lento na recta de Hunaudières, o piloto alemão tirou partido das chicanes para ganhar meio segundo nesse sector ao tempo do protótipo americano, arrancando a pole position numa manifestação de virtuosismo que deixa rendido qualquer adepto do automobilismo. Senão vejamos (porque vale mesmo a pena):

 

 

Entretanto, a Toyota fazia uma má ronda de qualificação: os embaraçosos 11º e último lugares da grelha dos hypercars faziam antever uma prova corrida de trás para a frente, se possível fosse à marca japonesa aguentar o ritmo feroz da concorrência.

O Porsche nº 12 da Hertz Team Jota, que conseguia um satisfatório oitavo lugar na grelha, teve no entanto uma acidente brutal nos ‘Esses da Floresta’ e teve que ser reconstruído, do zero e a partir de um chassis novinho em folha. Um trabalho que em circunstâncias normais leva 3 semanas a concluir, foi executado em cerca de 36 horas.

Na categoria LMP2, o AO by TF fazia a pole, mas os favoritos da United Autosports, da Cool Racing e da Vector Sport não vinham muito longe e havia que contar com os vencedores do ano passado, a Inter Europol, que não tendo feito melhor que o 11º lugar na grelha, mostra-se sempre competitiva em Le Mans.

Nos LMGT3, era muito difícil, senão impossível, destacar favoritos, porque também aqui a luta é sempre muito intensa e equilibrada e, como é o caso para as três categorias, a posição na grelha vale o que vale, numa corrida de 24 horas. A pole da equipa americana Inception, porém, não deixou de surpreender, considerando que a equipa dava os primeiros passos em Le Mans.

 

O Ferrari privado que podia ter ganho a prova se não tivesse derretido à 23ª hora

 

Um (primeiro) sprint de 10 horas.

O tempo instável, com períodos de chuva garantidos, e o equilíbrio e multiplicidade das forças em presença prometiam. E cumpriram. A Ferrari assumiu rapidamente o seu lendário estatuto, colocando os três carros nos cinco primeiros lugares, nas primeiras horas da corrida. A Toyota fazia o que lhe competia, recuperando paulatinamente o seu devido lugar na batalha pela liderança e chegando à noite com os seus dois carros colocados nos primeiros oito classificados, apesar de um erro de estratégia na escolha de pneus logo no primeiro aguaceiro que caiu em La Sarthe. A Alpine e a BMW, porém, abdicavam cedo das suas aspirações, com problemas mecânicos e erros de condução a comprometerem definitivamente as suas prestações antes que o primeiro quarto da corrida fosse atingido.

Ainda assim, ao cair da noite, quatro marcas mantinham o sonho da vitória: Ferrari, Porsche, Toyota e Cadillac alternavam de posições na tabela a um ritmo intenso, com constantes mudanças de liderança, tornado ainda mais frenético com a alternância das condições atmosféricas, que obrigavam as equipas a constantes e difíceis decisões sobre o timing certo da ida às boxes e a composição da borracha a usar em cada momento. O certo é que não houve um momento aborrecido até às duas da manhã, altura em que a direcção de prova decidiu estragar a festa. Ou, pelo menos, tentar.

 

 

A obsessão com a segurança esteve quase a destruir uma corrida fabulosa.

À semelhança do que aconteceu nas 24 Horas de Nurburgring deste ano, que na verdade teve pouco mais de 6 horas de corrida propriamente dita, a 101ª edição das 24 Horas de Le Mans foi perturbada pela obsessão com a segurança, que é hoje uma doença psíquica dos directores de corrida por todo o mundo e que ameaça existencialmente, sem exagero nenhum, o futuro do campeonato WEC e não só.

Hoje em dia, as provas de resistência são constantemente agredidas por períodos de bandeiras amarelas insustentavelmente longos, pelas razões mais banais que se possa imaginar. Um carro para numa escapatória: um terço do circuito fica sujeito à velocidade máxima de 80 kms/h. Chove com mais intensidade: entra o pace car e toda a gente fica a pastar na pista durante horas. Cai uma neblina madrugadora: vai tudo para a boxe dormir uma sesta.

Esta edição das 24 horas de Le Mans teve quase sete horas de Full Course Yellow, ou seja, os pilotos tiveram que seguir o pace car a oitenta à hora durante mais de um quarto da corrida. Nunca se tinha visto nada assim, nas cem anteriores edições. E porque razão? Houve acidentes terríveis, chuva torrencial ou um invasão de extra-terrestres? Não. Esta foi até uma corrida bastante pacífica, no que diz respeito a sinistros, e moderadamente temperada pela chuva. Mas na actualidade, basta que alguém vá contra uma parede de pneus para que se instale a ditadura securitária durante duas horas ou mais.

E se é verdade que o automobilismo é mais bonito quando os pilotos acabam as provas vivos da silva e sem mazelas de maior, há que perceber que a modalidade comporta um risco que será equivalente à sua glória. E que os espectadores, os patrocinadores e os media que transmitem e cobrem o evento também precisam de ser respeitados. Entre as duas e as oito da manhã, não se correu em Le Mans. Logo, todos os milhões de fãs que seguem o evento pela televisão, abdicaram por certo de fazer a típica directa e, assim sendo, uma boa parte do investimento publicitário feito nas transmissões televisivas foi completamente desperdiçado. E até os pilotos, que estas medidas extremas pretendem proteger, protestaram em uníssono por serem obrigados a conduzir muito devagar máquinas que são feitas para andar depressa, durante horas sem fim.

O que vale a quem manda é que a corrida foi de tal forma disputada, que somos levados a olvidar o prejuízo do fanatismo securitário. Mas atenção: mesmo com os actuais regulamentos, que criam de facto condições para provas rasgadinhas e interessantes de seguir, dificilmente uma corrida como a que aconteceu no fim de semana passado se voltará a repetir nos próximos tempos. E caso as futuras edições tenham mais chuva, ou mais acidentes, e um menor índice competitivo, os públicos vão rapidamente fugir do aborrecimento e todo o esforço que o WEC tem feito para criar uma competição que seja tão popular como a Fómula 1 será defraudado por uma deficiente equação de risco/benefício.

Qualquer dia, é mais perigoso ter a profissão de ciclista do que a de piloto de automóveis. O que, convenhamos, não faz sentido nenhum.

 

De manhã, o regresso à emoção.

É claro que depois de sete horas à beira de um ataque de nervos, o tempo que restava foi convenientemente passado com o pé na tábua e das oito da manhã até às quatro da tarde a corrida foi de loucos, e nas três categorias.

Nos LMP2, cinco carros lutaram até ao fim pela vitória, que coube ao nº22 da United Autosports conduzido por Oliver Jarvis, Bijoy Garg e Nolan Siegel. Mas 40 segundos depois do vencedor cruzar a linha de chegada, o quinto classificado desta categoria já tinha também terminado a prova.

 

O United Autoosports nº22, que ganhou a categoria LMP2

 

Nos GT3, a corrida só foi decidida na última hora, quando o Porsche da Manthey EMA, tripulado por Morris Schuring, Richard Lietz e Yasser Shahin conseguiu finalmente uma volta de vantagem sobre a mais directa concorrência. De destacar os três primeiros classificados tinham feito, na qualificação, o 16º, 15º e 17º tempos, respectivamente, o que revela bem o equilíbrio e a incerteza que se viveu nesta categoria.

 

O Porsche da Manthey EMA, vencedor dos LMPGT3

 

Nos hypercar, 11 carros estiveram na mesma volta durante 80% da prova e, no fim, os cinco primeiros protótipos terminaram separados por pouco mais de um minuto, e nove dentro da mesma volta, o que são recordes absolutos na história da prova. E se é verdade que os Porsche pareceram, a duas horas do término, afastados da possibilidade da vitória, esta oscilou constantemente entre os Ferrari, os Toyota e o Caddillac que ainda restava em prova.

Pelo meio, tensão máxima: do combate corpo a corpo entre os Ferrari e os Toyota, com pequenas vilanias que resultaram em piões e grandes duelos que produziram ultrapassagens espectaculares, ao drama do Ferrari 53, que ‘fritou’ completamente enquanto estava parado na boxe e quando era um dos protótipos mais bem posicionados para vencer a prova, aconteceu de tudo e a incerteza durou, literalmente, até ao último segundo das 24 horas.

No fim, depois de ter que ir às boxes fora do tempo para fechar a porta do lado direito, o Ferrari 50 da AF Corse, guiado por Antonio Fuoco, Miguel Molina e Nicklas Nielsen, que correu os últimos minutos literalmente com os fumos que restavam no depósito de combustível, numa guerra de nervos brutal que deixou o Toyota a apenas 14 segundos, deram à marca italiana o segundo triunfo consecutivo e o 11º em Le Mans. Mas foram honrosos vencidos todos os outros que terminaram na mesma volta e que presentearam a audiência global com um espectáculo épico, digno da galeria dos melhores momentos da história do circuito de La Sarthe em particular e do desporto automóvel em geral, mesmo apesar do disparate maricas da organização.

 

O Ferrari AF Corse nº 50, que deu à Ferrari o seu 11ª título em Le Mans

 

De destacar o comportamento meritório do Isotta Fraschini, que afinal não veio fazer turismo e terminou a prova (o simples facto de a terminar já é de saudar) num honroso 14º lugar. A Lamborghini Iron Lynx, que conseguiu colocar um carro nos dez primeiros e à frente dos dois Peugeot, também deixou boas indicações.

Inversamente, a ausência de Porsches no pódio de Le Mans deve estar a preocupar os responsáveis do projecto Penske. A marca alemã e o icónico empresário americano não convivem bem com derrotas e para o ano é de esperar uma reacção veemente. Pior esteve a BMW, que nos hypercar viu muito cedo os seus dois carros fora de prova. Resta a consolação, fraca, do segundo lugar na categoria LMGT3.

 

O Toyota nº 7 da Gazoo Racing Europe, que deu muita luta à Ferrari

 

Uma última palavra para a Toyota: Entre 2018 e 2022, a Gazoo Racing Europe venceu as cinco edições de Le Mans. Mas fê-lo sempre a concorrer contra ninguém, numa altura em que a primeira categoria da corrida só tinha Toyotas ou em que os outros protótipos em concurso não apresentavam condições performativas que pudessem dar luta à marca nipónica. Anteriormente, entre 2012 e 2017, os Toyota perderam para a Audi e a Porsche, com o requinte de crueldade de, em 2016, terem perdido a corrida na última volta. Ainda assim, a marca teima em competir, é competitiva, e ama a competição.

Na hora de glorificar, justamente, a Ferrari AF Course, há, também que honrar os que valorizaram esta vitória. E a Gazoo Racing Europe valorizou-a imenso. Como tem feito com todos os seus adversários desde 2012.