Todas as culturas humanas acreditaram na existência de seres sapientes e ameaçadores, mas não humanos. Têm sido designados por diferentes nomes: papões, ciclopes, gigantes, ogres, trolls, abomináveis homens da neves, marcianos e demónios, entre muitos outros. Mas são sempre temidos, espreitam nas sombras, ameaçam o clã, a tribo ou o lar. Os heróis lendários da humanidade têm lutado contra estes monstros desde tempos imemoriais.
A verdadeira questão é porquê – porque é que todas as civilizações têm mitos semelhantes? Porque é que todas as culturas têm lendas de humanoides monstruosos e porque é que eles são sempre representados como temíveis e perigosos?
Porque as lendas eram reais. Os monstros eram reais.
Esse é, pelo menos, o argumento apresentado por Danny Vendramini no seu livro “Them and Us: How Neanderthal Predation Created Modern Humans.” Vendramini é um pensador heterodoxo, e o seu argumento está bem fora do manistream. Por isso, antes de nos debruçarmos sobre o seu livro, vamos à procura da visão dominante.
A visão dominante.
Arqueólogos e geneticistas concordam que a humanidade co-evoluiu e cruzou-se com outras espécies de hominídeos semelhantes a nós. Actualmente, temos provas arqueológicas e genéticas abundantes, essencialmente irrefutáveis, da existência de múltiplas espécies semelhantes à humana nas eras Paleolítica e Neolítica. Estas incluem o Neandertal, o Denisovan, o Floresiensis (também apelidado de “Hobbit”) e várias espécies recentemente descobertas e não categorizadas, como o Homo de Nesher Ramla, encontrado em Israel. Estão constantemente a ser descobertas novas espécies semelhantes a humanos.
No entanto, nenhum destes humanos ou humanóides arcaicos vive actualmente. Nem um único. Todos se extinguiram, deixando apenas vestígios de artefactos enterrados nas camadas geológicas e fragmentos de ADN no nosso genoma. O que aconteceu a todos eles? É aqui que começam as divergências.
As possíveis causas da extinção identificadas pelos cientistas incluem:
– Extinção por parasitas e agentes patogénicos;
– Extinção devido ao cruzamento com a humanidade;
– Extinção devido à incapacidade de adaptação a alterações climáticas;
– Extinção por catástrofe natural; e
– Extinção atavés da guerra com os humanos.
Este último ponto de vista, que sugere que a raça humana exerminou brutalmente os outros primatas sapientes que enfrentou, foi proposto pela primeira vez pelo paleontólogo francês Marcellin Boule em 1912. Foi depois prontamente ignorada durante muitas décadas. Como explicado em “The Archeology of Warfare and Mass Violence in Ancient Europe”:
Os arqueólogos estão cada vez mais conscientes de que subestimaram o impacto social da violência colectiva… Sítios como Ribemont, Kessel, Monte Bernorio e Kalkriese confrontam-nos de uma forma pungente com as crueldades da guerra e da violência em massa no final da pré-história e no início da história. Há uma crítica crescente ao facto de a arqueologia ter marginalizado a violência e apresentado uma visão demasiado pacífica do passado.
Na verdade, não foi só a arqueologia que foi tendenciosa. Académicos de todos os tipos detestam a violência e, durante décadas, marginalizaram-na sistematicamente das suas explicações dos acontecimentos. Só nos últimos 20 anos é que os principais académicos e cientistas aceitaram a ubiquidade da violência no homem e nos seus parentes mais próximos:
– Os antropólogos subestimaram sistematicamente a violência dos povos indígenas, perpetuando o mito do nobre selvagem. Agora admitem que o nível de violência na pré-história e nas sociedades não estatais era muito superior ao actual.
– Os biólogos acreditavam que os chimpanzés só eram violentos devido às interacções com os humanos. Agora confirmaram que a violência é inata aos chimpanzés, que se dedicam frequentemente à guerra e ao assassínio.
– Os historiadores defendiam que a língua, a cultura e as linhagens indo-europeias se tinham propagado através da migração e do comércio. Agora reconhecem que foi através de conquistas violentas em grande escala.
Como o Contra já documentou, a crença idílica e ingénua no mito do Bom Selvagem tem sido desmentida pelo bom senso e pelos factos históricos e arqueológicos vezes sem conta, mas talvez nunca como em 2016, quando uma equipa de paleontólogos descobriu no Quénia aquilo que são, indesmentivelmente, os restos de um campo de batalha com 10.000 anos. Trata-se de um verdadeiro massacre. Homens, mulheres e crianças jazem brutalmente dilacerados de todas as maneiras e feitios num showcase de violência absolutamente recordista. Às conclusões tiradas sobre esta evidência arqueológica, somam-se as que decorrem de um estudo conduzido por David Carrier, da universidade do Utah, e publicado pelo The Journal Of Experimental Biology, que sugere que a mão humana tem evoluído para se tornar um instrumento de violência mais eficaz. Ao contrário do que acontece com outros símios, as mãos do homem fecham-se num punho letal, que maximiza a força no ponto de impacto. Na comparação com a estalada, solução muito utilizada pelos chimpanzés, os resultados do estudo mostraram que quando o polegar se contrai, a rigidez dos nós dos dedos quadruplica e a força transmitida durante o soco duplica.
Estamos programados para a violência. Evoluímos no sentido do combate. Sobrevivemos pelo recurso à agressão, independentemente do estágio civilizacional e da época histórica.
Com estes desenvolvimentos em mente, os principais académicos começaram finalmente a aceitar que os seres humanos conduziram os Neandertais à extinção através da guerra. Nicholas R. Longrich, professor catedrático de Biologia Evolutiva e Paleontologia na Universidade de Bath, apresenta um excelente resumo do consenso actual:
Guerrear é humano – e os Neandertais eram muito parecidos connosco. Somos notavelmente semelhantes na anatomia do crânio e do esqueleto e partilhamos 99,7% do nosso ADN. Em termos de comportamento, os Neandertais eram espantosamente parecidos connosco. O registo arqueológico confirma que a vida dos Neandertais era tudo menos pacífica…. A melhor prova de que os Neandertais não só lutavam como se destacavam na guerra é o facto de nos terem encontrado e não terem sido imediatamente invadidos. Em vez disso, durante cerca de 100.000 anos, os Neandertais resistiram à expansão humana moderna. Durante milhares de anos, devemos ter testado os seus lutadores e, durante milhares de anos, continuámos a perder. Finalmente, o impasse quebrou-se e a maré mudou. Não sabemos porquê. É possível que a invenção de armas superiores de longo alcance – arcos, lanças, bastões de arremesso – tenha permitido que o Homo sapiens, de constituição ligeira, assediasse os atarracados Neandertais à distância, usando tácticas de ataque e fuga. Ou talvez melhores técnicas de caça e recolha tenham permitido aos sapiens alimentar tribos maiores, criando superioridade numérica em batalha… Em última análise, ganhámos. Mas isso não foi porque eles eram menos inclinados a lutar. No final, provavelmente tornámo-nos melhores na guerra do que eles.
A opinião dominante é, portanto, que os Neandertais eram comportamental e fisicamente muito parecidos com os humanos, guerreavam como os humanos e acabaram por ser derrotados por tecnologia e números superiores, tal como os europeus derrotaram os povos indígenas ao longo da história. Por isso, a sua representação artística tem sido geralmente enquadrada neste registo:
A visão heterodoxa.
Vejamos agora o ponto de vista de Danny Vendramini. O autor concorda com a corrente dominante de que os Neandertais foram levados à extinção pela guerra com o Homo Sapiens. O ponto em que ele se afasta da ortodoxia é na sua avaliação de como eram os Neandertais.
Vendramini mostra que:
Os Neandertais eram predadores de topo. A análise de isótopos dos esqueletos mostrou que a dieta dos Neandertais era 97% carne. Estima-se que comiam 1,5 kg de carne fresca por dia. Existem muitas provas de que usavam lanças de madeira com ponta de pedra para caçar. A partir dos ossos espalhados pelas suas grutas, sabemos que os Neandertais caçavam mamutes, ursos, rinocerontes, bisontes, lobos e até leões – os animais mais perigosos e letais da Terra.
Os Neandertais eram canibais. Vários sítios neandertais revelam ossos que foram cortados e abertos para extrair a medula. Embora esta hipótese tenha sido inicialmente rejeitada, uma descoberta recente em El Sidron, em Espanha, revelou numerosos esqueletos de Neandertal com as marcas inconfundíveis de carnificina por canibais empunhando machados de mão, facas e raspadeiras.
Os Neandertais tinham ossos mais robustos e uma musculatura mais pesada do que o Homo Sapiens. O peso de um indivuduo Neandertal seria em média 25% maior do que o de um Sapiens. Eram tão musculados que os seus esqueletos tiveram de desenvolver ossos mais espessos. Citando o paleoantropólogo Erik Trinkaus: “Um dos traços mais característicos dos Neandertais é a massa exagerada dos ossos do tronco e dos membros. Todos os ossos preservados sugerem uma força raramente alcançada pelos humanos modernos. Um homem de Neandertal saudável poderia levantar um jogador da NFL sobre a sua cabeça e atirá-lo através das traves da baliza.” Os Neandertais também desenvolveram crânios extremamente espessos – “hiper-robustez pós-craniana” – que os protegia em confrontos a curta distância com as presas. Todos tinham cifose, com costas curvadas, que lhes conferia um perfil e um andar distintos.
Os dentes do Neandertal eram duas vezes maiores do que os dentes humanos, e, de acordo com uma investigação antropológica de 2008, as suas bocas podiam abrir-se muito mais do que as bocas humanas, o que lhes permitia dar dentadas extremamente grandes. A julgar pelo tamanho da mandíbula, a sua dentada tinha uma força tremenda.
Os Neandertais evoluíram na Europa da Idade do Gelo e tinham adaptações específicas a esse clima. Tinham membros curtos, narizes grandes e torsos compactos. O mais importante é que estavam cobertos de pelo espesso! Como não existe nenhum cadáver de Neandertal, este ponto não pode ser provado. Mas Vendramini salienta que todos os primatas, exceto o Homo Sapiens, estão cobertos de pelo e que todos os mamíferos adaptados ao frio durante a Idade do Gelo tinham pelo espesso. Não há qualquer razão para acreditar que os Neandertais não tinham pelo, excepto o nosso desejo de que se pareçam connosco. A única forma de os Neandertais sobreviverem na Idade do Gelo sem pelo era se fizessem roupas grossas e protectoras. O arqueólogo Mark White salienta que “o vestuário dos Neandertais teria de ser mais do que a tanga esfarrapada… da representação popular. Teria sido necessária alguma forma de alfaiataria… Mas os sítios neandertais não revelaram “nenhuma evidência de tecnologia de costura”. Eles não estavam a fazer roupas, porque tinham pelo.
Os crânios neandertais tinham enormes órbitas oculares, sugerindo olhos muito grandes. Isto, por sua vez, sugere que os Neandertais eram noctívagos. No entanto, os olhos grandes colocam um problema, uma vez que a Europa da Idade do Gelo teria apresentado aos Neandertais uma luz solar ofuscante reflectida na neve. Vendramini sugere que os Neandertais tinham pupilas com fendas alinhadas verticalmente, o que lhes permitia usar o diâmetro total da lente em condições de pouca luz, ao mesmo tempo que o mecanismo ocular se estreitaria durante os dias claros, protegendo-os da luminosidade intensa. Os primatas nocturnos, como o macaco rhesus e o macaco-coruja, têm todos olhos grandes com pupilas em fenda alinhadas verticalmente. Vendramini sugere que os Neandertais também tinham um tapetum lucidum (como um gato) que fazia os seus olhos brilharem no escuro, e tinham esclerótica escura como todos os outros primatas.
Os Neandertais tinham um prognatismo facial distinto que se caracterizava por narizes grandes e largos. Vendramini argumenta que este facto sugere um “focinho de Neandertal” com um nariz semelhante ao de um cão, concebido para caçar odores. Isto era útil durante as incursões nocturnas.
Os Neandertais não falavam línguas humanas. o Autor cita uma palestra apresentada em Setembro de 2008 na Associação Americana de Antropólogos Físicos: “A sua grande cavidade nasal teria diminuído a inteligibilidade de sons semelhantes a vogais, e a combinação de um rosto comprido, pescoço curto, trato vocal de proporções desiguais e nariz grande tornava altamente improvável que os Neandertais fossem capazes de produzir discurso [semelhante ao humano]”. As línguas dos Neandertais também não eram moldadas para falar claramente. Em geral, as provas sugerem uma criatura que falava com um timbre profundo, com muitos sons guturais.
O Neandertal que Vendramini descreve é, portanto, uma criatura aterradora: Um predador canibal encurvado, com olhos grandes e brilhantes e um focinho animalesco, coberto de pelo espesso e músculos maciços, construído para o combate corpo a corpo, caçando à noite, com uma voz gutural, e uma boca enorme com grandes dentes e mandíbulas poderosas. Não se parecia com o Fred Flintstone. Parecia-se com isto:
E isto, meus amigos, é um monstro. Uma criatura tenebrosa que tem ensombrado os nossos mitos e lendas e pesadelos há milhares de anos. É o grande inimigo, que explica até porque é que associamos a noite ao perigo de vida.
De facto, o Neandertal e o Homem eram predador e presa – e nós éramos a presa. Os Neandertais atacavam os infelizes humanos durante a noite, matavam os nossos homens e levavam, violavam e devoravam as nossas mulheres e crianças. Foi assim que o ADN dos Neandertais entrou no nosso genoma, já que só muito dificilmente qualquer mulher sapiens desejaria copular com um monstrengo Neandertal. E continuaram a fazê-lo, geração após geração. Não só eram mais fortes, mais rápidos e mais resistentes do que o Homo Sapiens, como os Neandertais eram igualmente inteligentes e bem armados.
Sob o ataque destes monstros carnívoros, a raça humana esteve à beira da extinção. Só sobrevivemos ao ascender a predadores de topo. Tornámo-nos os maiores assassinos que o mundo alguma vez conheceu, porque se não o tivéssemos feito, teríamos morrido.
A teoria de Vendramini está correcta? Ele cita uma série de anomalias na composição genética e no registo fóssil dos seres humanos como prova.
Comecemos pela composição genética. A coisa mais notável sobre o genoma humano é o facto de não ser muito diversificado. De acordo com o geneticista Pascal Gagneux, os seres humanos têm, de longe, a menor quantidade de variação genética de todas as espécies de primatas.
“Na verdade, descobrimos que um único grupo de 55 chimpanzés na África Ocidental tem o dobro da variabilidade genética de todos os seres humanos”.
Outro cientista, Bernard Wood, diz:
“A quantidade de variação genética que se acumulou nos humanos não é compatível com a idade da nossa espécie. Devemos ter estado à distância de uma mortalha de cigarro de nos extinguirmos.”
O Dr. David Reich, da Escola de Medicina de Harvard, calculou que a certa altura da pré-história, a população de humanos caiu para apenas 50 indivíduos. Algo terrível aconteceu à raça humana.
Quando é que ocorreu este estrangulamento da população? Várias equipas analisaram as taxas de mutação para o descobrir. A taxa de mutação nos nossos cromossomas Y sugere que o estrangulamento ocorreu num período entre 37.000 e 49.000 anos. A taxa de mutação dos polimorfismos de nucleótido único sugere 48.000 anos atrás. O estudo do Dr. Reich afirma que a redução populacional se deu num laspo temporal entre os 27.000 e os 53.000 anos atrás.
Passemos agora aos fósseis, especificamente à colecção conhecida como os fósseis de Qafzeh-Skhul. Encontrados no actual território de Israel, os Qafzeh-Skhul representam uma das primeiras populações conhecidas de Homo Sapiens. Os fósseis apareceram pela primeira vez na região do Levante há cerca de 125.000 anos. Depois de dezenas de milhares de anos a ocupar o Levante, os Qafzeh-Skhul começaram a desaparecer do registo fóssil há cerca de 80.000 anos. Durante os trinta mil anos seguintes – ou seja, entre 80.000 e 50.000 anos atrás – os fósseis na região do Levante são maioritariamente de Neandertal. Depois disso, os fósseis de Neandertal começam a desaparecer do Levante e os fósseis de Homo Sapiens começam a reaparecer.
A cronologia aparente da invasão neandertal coincide com a cronologia aparente do nosso estrangulamento genético. Os Neandertais invadiram o Levante há cerca de 80.000 anos e conduziram a raça humana à beira da extinção.
O Neandertal foi-se, mas nós perdurámos. Enquanto vivemos, ele também vive, pois ainda transportamos fragmentos do seu ADN. E, se calhar, transportamos também a memória do grande inimigo da nossa espécie nos nossos mitos, nas nossas lendas ou no nosso inconsciente colectivo junguiano. Como escreve Vendramini:
Se as mitologias gregas, romanas, nórdicas e chinesas são algo a seguir, as lendas contadas pelos primeiros humanos centram-se num humano heróico (quase sempre um homem) que enfrenta um monstro feio, malvado e cruel com uma força sobre-humana… Este monstro mítico universal é geralmente masculino, invariavelmente selvagem, peludo, perigoso e rude. Muitas vezes, é metade homem, metade animal, e tende a viver em florestas húmidas ou cavernas escuras, ou a emergir do “submundo” a coberto da escuridão… O monstro é frequentemente um demónio sexual que rapta e arrebata donzelas inocentes e princesas belas, que arrasta para o seu covil sombrio. Alimenta-se normalmente de carne humana, devora crianças e persegue-as de noite.
Não há monstros debaixo da cama. Mas já os houve à espreita, na calada da noite.
A.J. Gentile dedica um episódio do Why Files a este assunto. O Contra recomenda.
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